Manuais vão ter de mudar: Os primeiros artistas foram os neandertais
Há uma nova datação de pinturas rupestres que já eram conhecidas em três grutas de Espanha e ela conta uma história surpreendente, que muda tudo. Aquelas pinturas que, sabe-se agora, têm mais de 65 mil anos e são as mais antigas do mundo - pelo menos até agora -, só podiam ter sido feitas por Neandertais. Afinal, foram eles os primeiros artistas, o que abre novas perspetivas sobre o que é ser humano. O estudo que comprova que os Neandertais se expressavam através da arte e de símbolos é publicado hoje na revista Science e tem como coautor o arqueólogo português João Zilhão, das universidades de Barcelona e de Lisboa.
Num outro artigo também publicado hoje, na Science Advances, uma parte da mesma equipa, incluindo João Zilhão, faz igualmente a datação de uma série de conchas furadas e pintadas de amarelo e vermelho, que foram utilizadas como ornamentos, e chega a conclusões idênticas.
As conchas têm entre 115 e 120 mil anos e atiram ainda mais lá para trás as atividades humanas associadas à expressão artística e simbólica: elas são ainda mais antigas do que alguns artefactos idênticos descobertos em África, associadas ao Homo sapiens. Mas estas, encontradas em Espanha, não têm nada a ver com ele.
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As pinturas nas grutas, em vários tons de vermelho "são signos geométricos, discos e traços, e mãos em negativo", conta João Zilhão ao DN, sublinhando que "só podiam ter sido Neandertais a fazê-las, porque nessa época, há mais de 65 mil anos, eram eles que habitavam a Europa".
Para fazer a nova datação, a equipa de João Zilhão, que contou com investigadores de vários países, incluindo Espanha, Alemanha e Reino Unido, usou uma técnica há muito utilizada em estudos paleoclimáticos, designada U-Th, ou seja urânio-tório.
"Nos últimos 15 anos, o Dirk Hoffmann [do Instituto Max Planck, na Alemanha], que é o principal autor dos dois artigos, conseguiu desenvolver e melhorar muito esta técnica de forma que bastam amostras muito pequenas para conseguirmos obter resultados", explica João Zilhão.
Foi exatamente isso que aconteceu. Os investigadores analisaram amostras de três grutas - La Pasiega, na Cantábria, Maltravieso, na região de Cáceres e Ardales, na costa sul (ver mapa) - e acabaram por comprovar, não apenas que a arte rupestre é muito mais antiga do que se supunha, mas também que os artistas, afinal, foram quem menos se esperava.
Para João Zilhão, não restam dúvidas. Esta descoberta "encerra o debate científico" sobre as capacidades cognitivas dos Neandertais, e vai obrigar a rescrever os manuais de antropologia. "Isto diz-nos que eles não eram diferentes do Homo sapiens do ponto de vista da inteligência e da cognição".
Paul Pettit, da Universidade de Durham, e outro dos coautores do artigo da Science, di-lo de outra maneira: "Os Neandertais criaram símbolos com significado em locais [para eles] com significado" e, por isso, sublinha o investigador, isto "é o início de um novo capítulo no estudo da arte rupestre".
As implicações do estudo sobre a visão que a ciência tem dos Neandertais não são menores. "O debate sobre quão parecidos eles eram com os humanos modernos é atualmente muito forte e os nossos resultados dão um contributo muito significativo para ele", garante por seu turno Alistair Pike, da Universidade de Southampton, que também integrou a equipa.
João Zilhão conhece bem esse debate. Afinal, está no centro dele há cerca de duas décadas, desde o achado, em 1998, do Menino do Lapedo, em Leiria, cujo estudo ele coordenou (ver caixa). A descoberta que hoje publica com os outros coautores na Science vem reforçar a sua visão. Por isso, como, ele próprio diz, atreve-se a "ir mais longe". Assim: Neandertais e humanos modernos, ao partilharem o mesmo tipo de pensamento simbólico, "eram indistinguíveis do ponto de vista cognitivo e da inteligência" e, por isso, "os Neandertais eram Homo sapiens". Este debate, defende, "pode-se considerar fechado". E, voltando às conchas e à sua antiguidade estonteante, o arqueólogo propõe: "na busca da origem da linguagem e da inteligência humana temos de olhar ainda mais para trás, para o antepassado comum de Neandertais e humanos modernos".