Os indesejados

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1 "Andamos sempre preocupados com merdas que não valem nada quando existe tanta gente a precisar de ajuda" - assim reagiu, por impulso e em mensagem escrita, no domingo à noite, um amigo meu à grande reportagem que a TVI acabava de emitir no Jornal das 8. Indesejados foi o título certeiro que o trabalho recebeu e, de facto, o assunto não estava na "ordem do dia".

Às vezes é assim. Arriscamos e conseguimos levantar a cabeça, ver o horizonte, não ficar refém daquilo que quotidianamente nos consome. Em tempo, em energias, em preocupações. Andamos sempre preocupados, diz o meu amigo, que só não identifico por não ter a certeza de que os seus filhos têm noção de que o seu pai diz palavrões e classifica de "merdices" as coisas que levamos muito a sério no nosso dia-a-dia.

Os indesejados são os refugiados. Os indesejados estão encurralados. São acossados os indesejados, porque estão desesperados. Na linha da frente, estão aqui à nossa frente, diante dos nossos olhos, à porta das nossas casas, e parecem irremediavelmente perdidos.

Como perdidos?! Se só os deixámos de ter porque os deixámos de ver? Estão nas nossas barbas, mas desviamos os olhos. Como os tapávamos até ao dia em que o bebé deu à costa. O corpo de Aylan Kurdi, um bebé sírio-curdo de 3 anos, fez na sexta-feira um ano, obrigou-nos a ver, impossível continuar a contemplar esta tragédia com os mesmos olhos: podíamos ser nós. Podíamos mas não somos. Isso faz toda a diferença. É a diferença entre quem se perde a discutir "merdas" e os que literalmente nela vivem. A reportagem da TVI não choca pela miséria. Conhecemo-la intramuros. Sabemos, por experiência própria, que há pessoas que vivem sem dignidade, sem humanidade, até sem a esperança de que o pesadelo passe.

A angústia é outra. É a sensação de que não há solução. Para um problema que não para de crescer. E o "mergulho" que o jornalista André Carvalho Ramos fez nestes campos de refugiados, na Grécia, leva-nos na verdade para um ringue de boxe. Testemunhos feitos em sequência de murros no estômago.

Afinal não somos nós. Isso faz toda a diferença. Daí a nossa indiferença. Os murros atingem-nos no estômago, mas doem em todos os sítios. Aylan Kurdi foi apenas um dos dez mil que já morreram nas travessias suicidárias. Tornou-se um poderoso símbolo da nossa impotência. E as crianças que ainda falam? Onde nos atingem as perguntas que fazem? Pior só mesmo as respostas que dão.

Dói quando, perguntado sobre o que mais queria, uma criança de 10 anos só pede uma escola e uma casa. Dói quando um engenheiro informático, homem perplexo, olhar inteligente, tornado indigente, pergunta a si próprio como foi possível ter uma vida inteira acreditado na Europa, que o inspirava, enquanto guardiã exemplar dos direitos humanos à escala planetária.

2 Não é para eles que olhamos, não são eles os destinatários de apelos lancinantes, textos destes, gritos pungentes, de reportagens duras e comoventes como os "Indesejados" do André Ramos. Neles já deixámos de acreditar. Os refugiados também. De tão evidente que é o seu desespero. Da falta de argumento que deixámos de ter - não se pode dizer que não se vê, porque é aqui dentro que estão a viver.

A angústia é que estão realmente à nossa frente, mas desviamos o olhar. Os governos falham e a sociedade, sozinha, resigna-se impotente, desiste, lida como se fossem novos pobres - e assim a comunidade procura adaptar-se a esta normalidade, quando o que ali vemos é desumanidade. E é um tic-tac de uma bomba que vai explodir. Não se sabe quando, nem qual a potência do estardalhaço, mas vai!

Para não nos incomodar, fechamo-los em campos impenetráveis, prisões impossíveis de visitar. O propósito essencial é porém deportá-los, pagar a quem os receba. Sem fazer perguntas sobre a forma como os tratam. Perdemos a legitimidade de questionar quem quer que seja.

E essa é a pior das nossas perdições. Os europeus deixaram de inspirar valores junto de outros povos porque, objetiva e sistematicamente, continuam a trair a sua confiança. Deixámos de estar à altura do papel que, desde que desencadeámos guerras mundiais, fomos construindo nas últimas seis décadas da história.

Sim, o meu amigo tem razão, quando se irrita por perdermos a perspetiva, por não termos noção da relatividade dos nossos problemas. São triviais as nossas questões. Ficam mesquinhas as controvérsias em que nos perdemos. Não somos nós, mas são realmente gente como nós.

Não, o meu amigo não tem razão, não é da nossa ajuda que eles precisam. Precisam de que a gente não se esqueça. Precisam de que a gente reaja. Precisam de que a gente entenda o que lhes aconteceu, o que nos está a acontecer a todos. Eles, vestidos de farrapos. Nós, a querer despir as suas mulheres que frequentam as nossas praias trajando burquínis.

O paradoxo instalou-se na nossa casa. Vergonha alheia. Lamechices oficiais. Emergência dos radicais. A força dos perigosos é a alternativa - que nasce e cresce diante dos nossos olhos - às emoções inconsequentes de presidentes e primeiros-ministros politicamente corretos. Que choram sem agir. Que lamentam sem decidir. Estão totalmente corretos, todos politicamente nulos. Não vão também eles sobreviver a isto. Já não o estão. Perdem as eleições a que vão. Para outra estirpe que aí vem. Aqui na Europa começa também a tresandar a Trump.

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