Os homens que não gostam de mulheres

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Piropo é uma palavra enganadora porque alude a um elogio, a algo gracioso, embora muitas vezes seja um ataque. Não é preciso fazer um estudo de opinião para saber que nem todos os piropos são do género "Não sabia que as flores andavam" ou "Esse corte de cabelo vai muito bem com o formato da tua cara". Ao longo dos anos, escutei de várias mulheres histórias de abusos, o relato de uma violação (pelo próprio namorado) e incontáveis frases de agressão, como aquela que, em Madrid, uma amiga ouviu a caminho do emprego: "Até te comia o período à colherada."

Se reproduzo aqui este tipo de ofensa e mau gosto é apenas porque me parece que muitos homens não entendem a diferença entre elogio e agressão, entre iniciar uma conversa e fazer uma ameaça. Há muito que tento perceber o que se passa nessas cabeças. E não estou sozinho nessa busca. Num dos seus espetáculos de comédia, Jerry Seinfeld questionava a lógica daqueles que buzinam no trânsito quando veem uma mulher no passeio. Estão à espera de que ela corra atrás do carro e, num semáforo vermelho, aproveite para dizer "Sim, quero ir beber um copo contigo"?

Uma coisa parece clara: não é por uma questão de eficácia que ainda há homens a dizer "Ó flor, deixa-mo pôr" ou "Ó Inês, vais com os três?". Seria de esperar que, ao fim de várias tentativas, percebessem que as promessas sexuais explícitas não costumam funcionar. O que me leva a concluir que não querem realmente seduzir ou conversar, mas impor um tipo de poder que só pode ter origem na ignorância, no descaso pelo outro e num perigoso sentimento de superioridade.

Para que o sexo masculino pudesse entender o que é estar submetido ao acosso constante, talvez só renovando um mito clássico, mas em vez de transformar Tirésias em mulher, para que pudesse responder perante os deuses sobre qual dos géneros tinha mais prazer sexual, colocaríamos a versão feminina de Tirésias no banco de trás de um táxi com um motorista bêbedo, ou a viajar na mesma carruagem de metro com um masturbador de meia-idade, ou a receber fotos de pénis não solicitadas no telemóvel, ou a ser seguida até casa.

Os homens não têm de pensar sobre o tamanho da saia ou do decote antes de saírem à rua, não têm grandes problemas em ir a pé para casa às quatro da manhã, não são submetidos ao assédio ou ao sexo como forma de intimidação. Já as mulheres lidam com isso diariamente. Em todo o globo, os homens competem com as tromboses e os ataques cardíacos como causa de morte mais frequente entre as mulheres. Os homens são o principal predador das mulheres. No Brasil, onde se fez uma campanha que apelava às mulheres para publicarem nas redes sociais o relato da primeira vez que foram abordadas na rua, era espantoso ver como, em muitos casos, as vítimas eram apenas crianças. Em 2014 foram violadas 47 mil mulheres no Brasil, embora o Fórum Brasileiro de Segurança Pública avance que, tendo em conta os casos não reportados oficialmente, o número possa ultrapassar as 400 mil. Um piropo ordinário pode não levar à violação - embora conduza muitas vezes ao apalpão -, mas perpetua e celebra um estado mental de violência, de insegurança física e subjugação da mulher.

Podemos encontrar comportamentos masculinos lamentáveis em todas as latitudes, mas é um facto que uma mulher sueca corre menos risco do que uma mulher brasileira ou portuguesa. Nas culturas em que a masculinidade ainda é interpretada com um sentimento de posse e de poder, há uma maior complacência com os abusos, como se o piropo ofensivo ou o apalpão no autocarro fossem uma espécie de tradição máscula e de pleno direito, como ir à caça, às corridas de touros, conduzir bêbedo ou achar que qualquer progresso na convivência humana é uma cedência ao politicamente correto.

O entendimento da palavra piropo como apenas algo engraçado, que faz parte do folclore masculino, tão inalienável como o futebol ou a palmada nas costas, mostra que existe um fosso entre a realidade diária das mulheres e a forma como alguns homens se veem a si mesmos e ao sexo feminino. Será que, em tantos anos de evolução, o melhor que conseguimos até agora foi "Lindas pernas, a que horas abrem?". Mesmo os piropos mais inocentes são uma forma primária de sedução - tão fundamentais para a comunicação humana como os emojis.

A esta altura do campeonato da civilização humana seria de esperar que uma mulher não tivesse de baixar a cabeça e aceitar a humilhação, tal como não seria de esperar que ainda haja quem lamente a penalização destes comportamentos boçais que infligem danos. Há em tudo isto um enorme contrassenso porque, apesar da ilusão de masculinidade, estes homens são uns cobardes. Um homem a sério conhece o sentido da palavra "consentimento". Um homem a sério sabe que não quer dizer não.

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