Os homens-piolho
Decerto não pretendem sugerir que a Li se aplica a mim?", disse Ruan Ji, que depois explicou:"Alguma vez viram os piolhos que habitam num par de calças?
Saltam para as profundezas das costuras escondendo-se nos fios de algodão e acreditam ter um lugar agradável para viver.
Quando andam, não se arriscam a ir mais longe do que o limite da costura; quando se movem, têm cuidado para não sair pelas pernas das calças; e acham que se mantiveram fiéis às regras da etiqueta.
Contudo, quando as calças são passadas a ferro, as chamas invadem os montes... então os piolhos que vivem nas calças não conseguem fugir.
Que diferença há entre um cavalheiro que vive num mundo estreito e os piolhos que vivem nas pernas das calças?"
In A New Account of the Tales of the World, uma compilação de textos e histórias de poetas e artistas dos períodos Han e Wei-Jin.
Não conheço mundo mais estreito do que o da política portuguesa. Um par de calças justas, com uma perna esquerda e outra direita, por onde se passeiam cavalheiros que se mantêm fieis às regras da etiqueta política que não muda há mais de quarenta anos: os mesmos discursos, os mesmos preceitos e preconceitos, as mesmas arengas, os mesmos resultados. Tudo o que fazem ou farão, tudo o que dizem ou dirão é de tal modo ritualístico e convencional, que assistir ao espetáculo da política e ao seu coro de comentadores chega a ser mais entediante e previsível do que uma missa de domingo. Tal é a devoção à Li.
A Li de que fala Ruan Ji - poeta, pensador e músico chinês do século III - é um conceito do confucionismo que significa tudo o que se deve fazer e é esperado que se faça. A Li é o ritual, o costume, a convenção.
Ruan Ji fez parte de um grupo de livre--pensadores neotaoistas, chamado Os Sete Sábios do Bosque de Bambu, que considerava o pensamento confuciano da época uma corrupção do pensamento original destinada a servir os interesses da corte, e de quem lá servia e se servia. Estes sábios, cada um à sua maneira, renunciavam à Li.
A China, então, encontrava-se dividida em três reinos e vivia um período sangrento chamado o Período da Desunião, depois da dinastia Han ter perdido o Mandato dos Céus.
(O Mandato dos Céus é uma antiga ideia sobre a legitimidade do poder: os Céus derramam sobre o imperador o poder de governar se este demonstrar habilidade para fazer o bem e ser justo; se não cumprir, o mandato é-lhe retirado e transferido para outro. O próprio facto de um imperador ser derrubado pelos adversários - na altura pela força das armas e não pela maioria dos votos - era, em si mesmo, sinal de que tinha perdido o Mandato dos Céus.)
Eram tempos violentos e perigosos para quem não acatava as regras da corte. O que era esperado de homens cultos como os Sete Sábios, educados nos clássicos e virtuosos na escrita, era que cumprissem o preceito: deviam ser poetas sérios e moralmente responsáveis, deviam estudar e servir o Estado disponibilizando os seus talentos na corte.
"Que se lixe a corte!", devem ter dito os Sete Sábios quando se refugiaram em casa de Ji Kang num bosque de bambu. Aí, nos intervalos da épica intoxicação a que se dedicavam com vinho e han-shih-san - um pó alucinogénico feito de cinco minerais - conversavam, escreviam poesia, tocavam música e copulavam. As convenções e rituais da época não eram para eles, e cumprir ou não cumprir a Li era a questão filosófica central em muitos dos seus escritos e ensaios.
Mas naquela época, qualquer comportamento suspeito, falha no protocolo ou gesto em falso podia ter como consequência a morte. Ji Kang, ao ter sido insolente com um representante do imperador que lhe oferecia uma posição na corte, e depois de ter defendido um amigo injustamente condenado em tribunal, acabou executado; pelos piolhos de que fala Ruan Ji.
Todas as terras e todas as épocas têm os seus piolhos. E todas elas encontram o seu modo particular, mais ou menos violento, de executar quem não cumpre a Li.
Diz a Enciclopédia Britânica que, quando confrontado com a escolha de calar-se e aceitar as manobras corruptas da corte, ou ser sujeito a duros castigos, Ruan Ji escolheu embebedar-se.
Ora aí está uma bela ideia: ir para o bosque e esperar sentado que os Céus retirem o mandato aos homens-piolho que habitam a perna esquerda e a perna direita das estreitas calças da política.