Os hipsters do bairro judeu de Cracóvia
Kazimierz - o antigo bairro judeu de Cracóvia - tornou-se, agora, um lugar onde cada pontapé numa pedra faz aparecer um hipster. Mas o coração do bairro permanece. Na rua Szeroka, que se abre como uma praça onde vários restaurantes de comida kosher, ou apenas de inspiração judaica, somos recebidos com música klezmer ao vivo e não é difícil encontrar o hummus perfeito. A Praça Nova - Plac Nowy - é o verdadeiro coração do bairro, conhecido desde sempre como o lugar certo para street food e onde se pode experimentar a melhor zapiekanka da Polónia. Importa não esquecer o edifício redondo que é conhecido pela forma que tem: Okraglak (edifício redondo, seria escusado explicar).
As memórias de outro tempo de Cracóvia também se podem reconstituir para quem prefere imaginar-se no velho cenário decadente anterior à democracia. Basta entrar no Zakaski i wódka, como todos os novos espaços na Polónia que convidam a experimentar vodka e a típica comida do período comunista. Este tem o clima adequado. Retro. Nesta casa não se fala inglês, o que ajuda a compor o cenário, mas basta pedir a sopa do dia - zupa - e, claro, vodka, para a imersão no cenário - sempre um cenário, convém recordar - ser perfeita.
A Polónia religiosa é, naturalmente, uma opção fácil em Cracóvia. A Basílica gótica Mariacki, na praça principal, com o famoso retábulo do escultor Wit Stwosz (Veit Stoss) enche-se facilmente de turistas, por razões compreensíveis. Talvez se surpreendessem mais com uma visita à Igreja de S. Francisco de Assis e, de costas para o altar, perceber que por cima da entrada principal há um vitral de Stanislaw Wyspianski. A sua relação com a representação de deus na Capela Sistina pode não ser imediata, mas reconhece-se. Wyspianski também era um artista de memórias. Do seu século XIX visitava o estilo renascentista sem qualquer dificuldade. As expressões artísticas, como as cidades, são também formas de revisitar memórias. Deste Da Vinci tardio, também ele multifacetado, reconhecido pela poesia e dramaturgia, é possível ver mais obras no Museu Nacional de Cracóvia, ao lado das de Olga Boznanska e de Jacek Malczewski. Há, também, todos os lugares famosos, igrejas, sinagogas, castelo. Mas esses vêm nos guias turísticos.
A cidade dentro do museu. A cidade como museu. Cracóvia confunde-nos. Essa é, certamente, uma das maiores virtudes de cidades como esta. Não nos permitirem uma só leitura. Serem o resultado de camadas sobrepostas de memórias. Mesmo aquelas que agora se reconstroem com preocupações obviamente turísticas. Mas memórias vivas em cada rua. Isso não é uma cidade-museu, exposta para quem a visita. Pelo contrário: é um Museu-cidade, vivo, em mutação, com múltiplas leituras.
Pró-reitor da Universidade de Aveiro