"Os governos têm a obrigação de investir nos contracetivos masculinos"
Só em 1968 é que a comunidade internacional reconheceu o direito a decidir quantos filhos se tem e quando; só em 1993 é que a violação dentro do casamento foi considerada um crime contra os direitos humanos. (...) E ainda hoje os corpos e vidas das mulheres e das raparigas não são vistos como delas. Não chega prometer igualdade de género, é preciso pô-la em prática."
As palavras são da médica panamense Natalie Kanem, atual diretora executiva do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), na apresentação feita à imprensa, esta terça-feira, do último relatório, focado na gravidez indesejada, deste organismo que se ocupa dos direitos sexuais e reprodutivos.
Frisando que os efeitos das gravidezes indesejadas, contabilizadas em 121 milhões anuais, cerca de 331 mil por dia, vão muito para além da esfera individual - "A perda de rendimento e de educação de cada pessoa não afecta só essa pessoa" - e que existe uma correlação clara entre a taxa de gravidez indesejada e os níveis de desigualdade de género e de desenvolvimento de cada país, Kanem apela a que situação não continue a ser "minimizada" e que "as vozes das mulheres e raparigas sejam ouvidas".
O que se sabe, alerta, é que "gastamos muitos milhões nos sistemas de saúde para lidar com este problema. E que investir na contraceção "paga" nove dólares por cada um investido." Nesse sentido, lança um repto: é altura de deixar de ver as mulheres como as únicas responsáveis por evitar a gravidez. "As mulheres não podem ficar grávidas sozinhas. Aguardamos o desenvolvimento de métodos contracecionais para os homens, para que possam partilhar esse fardo."
257 milhões de mulheres sem acesso a contracetivos modernos
Segundo o relatório, a taxa de gravidez indesejada desceu entre 1990 e 2019 e tem havido progressos na aceitação e uso de contracetivos em todas as regiões do mundo.
Em 2022, 1,1 mil milhões dos quase dois mil milhões de mulheres em idade reprodutiva (dos 15 aos 49) são consideradas como tendo necessidade de contraceção, o que significa que têm vontade de limitar o numero de filhos ou adiar tê-los. Dessas, 850 milhões têm acesso a métodos modernos e 85 milhões usam um método tradicional (abstinência periódica ou coito interrompido, responsáveis por muitas gravidezes indesejadas, como demonstra um estudo de 2020 em 36 países de baixo e médio rendimento, segundo o qual 65% das mulheres nessa situação ou não usavam qualquer método, ou usavam métodos tradicionais).
Por outro lado, se nos anos 1990 o desconhecimento dos métodos anticoncecionais era o principal motivo para não serem usados, agora é a razão menos avançada; foi substituída pelos efeitos secundários e pelas relações sexuais pouco frequentes.
Estima-se ainda assim que globalmente 257 milhões de mulheres que querem evitar a gravidez não estejam a usar métodos modernos e seguros de contraceção e que destas 172 milhões não estejam a usar qualquer método.
Em 64 países, 8% das mulheres não têm como fazer escolhas em matéria de contraceção e 24% nem sequer podem aceder a cuidados de saúde, o que, sublinha o UNFPA, é uma violação dos direitos humanos, a exigir ação dos países, e que se agudizou com a pandemia de Covid-19.
Parte considerável dos abortos ocorridos - 60% das gravidezes não desejadas resultam em aborto - decorrem dessa situação, com 45% deles feitos sem segurança e resultando na hospitalização de sete milhões de mulheres por ano, o que, além de custar uns estimados 533 milhões de dólares, resulta em 193 mil mortes maternas.
Métodos "masculinos" responsáveis por 1/4 da contraceção
Com a pandemia de Covid-19, as insuficiências dos serviços de saúde agravaram-se em todo o mundo. O UNFPA contabilizou 1,4 milhões de gravidezes indesejadas em 2020 devido a falha nos serviços de saúde. Em sítios com maiores carências, como Guiné Bissau, sublinhou-se na apresentação do atual relatório, "as mulheres vão aos serviços de saúde à procura de anticoncecionais e não há preservativos nem dispositivos intrauterinos."
Mas, como frisa esta agência da ONU, não é só em relação às mulheres que existem necessidades não satisfeitas de anticoncecionais; também os homens estão delas mal servidos - mesmo se, reconhece-se, as atuais formas de recolha de informação não permitem avaliar o problema.
Os dois métodos mais utilizados "pelo lado dos homens" - o preservativo e o coito interrompido - correspondem a cerca de 26% das práticas anticoncecionais no mundo. Sucede que os preservativos masculinos têm uma taxa de falhanço de 13% e o coito interrompido é um dos métodos menos eficazes. Muitíssimo eficaz, em contrapartida, é a vasectomia, sendo que menos de 3% dos casais recorrem a ela.
Há atualmente cerca de 40 métodos anticoncecionais para homens em desenvolvimento, entre comprimidos, pomadas, pensos, injetáveis e até um aparelho que funciona como vasectomia mas que é reversível.
Mas não tem havido grandes avanços em nenhum. O motivo é simples e óbvio: tudo o que diz respeito a saúde reprodutiva está culturalmente direcionado para as mulheres, por serem elas que engravidam e portanto a elas que se exige desde sempre a responsabilidade nestas matérias, tanto em relação ao "preço" a pagar como às escolhas a fazer.
Exigências de segurança para contracetivos masculinos maior que para os femininos
"É justo, isso?", pergunta o UNFPA. "Por que é que não há escolha contracetiva para os homens?" E responde: tendo o desenvolvimento destes métodos sido deixado sobretudo nas mãos do mercado, o resultado é a ausência de opções para os homens - o que leva a concluir que cabe então aos governos investir no respetivo desenvolvimento, tendo em conta a obrigação assumida pelos estados de combater estereótipos de género (consignada no já longínquo ano de 1979, há mais de quatro décadas).
Essa iniciativa é tanto mais imperativa quando a investigação demonstra que em muitos países os homens estão interessados em métodos contracetivos a eles dirigidos. Um inquérito feito nos EUA em 2019, num universo de 1500 homens, concluiu que, entre os que estavam interessados em evitar a gravidez, 60% gostariam de ter acesso a um novo método "masculino".
Sucede que para ser competitivo um novo contracetivo masculino precisa de ser pelo menos tão eficaz como os mais eficazes métodos femininos. E em termos de efeitos secundários, não tendo como reverso da medalha a possibilidade de passar por uma gravidez (cujo resultado, lembra o relatório, pode ser mortal), precisará de ainda maior segurança que os seus congéneres femininos.
Critérios que se têm revelado aparentemente impossíveis de cumprir. Se por exemplo injeções hormonais semanais se demonstraram eficazes na prevenção da gravidez, com efeitos secundários mínimos em geral - verificaram-se alguns casos de acne, aumento de peso e alterações emocionais, algo muito comum no uso da pílula feminina -, mal um dos participantes nos testes desenvolveu uma depressão grave e outro tentou suicidar-se, os ensaios foram interrompidos. Isto, sublinha-se no relatório, mesmo se a depressão é um risco conhecido, e portanto aceite, da pílula feminina.
Assim, conclui o UNFPA, é preciso investimento dos estados nesta matéria. Até porque especialistas nesta área consideram estar a verificar-se uma mudança muito notória nas atitudes dos homens, com os jovens a demonstrar abertura para experimentar coisas que os mais velhos recusariam. É preciso, como diz Natalie Kanem, dar voz às mulheres, mas também ouvir novas vozes de homens.