Os gaiteiros da Rainha

Publicado a

Depois dela é que vão ser elas - é o que vai na cabeça do camone quando ainda cheira a incenso pelos funerais da Rainha. Escrevo com maiúscula, porque tendo ela ascendido ao trono em 1952, nenhum de nós conheceu outra. E sabemos mais dela que de Costa ou Marcelo. E dela a referência de serenidade, estabilidade e solidez. Sim, a Rainha tornou-se também um produto de marketing, e os meios intrometem-na tanto nas nossas vidas que até ficamos a saber que uma das suas poucas extravagâncias era o toque do gaiteiro, um real serviço de despertar, a cada manhã, debaixo da sua janela, em Balmoral, onde morreu.

Quantos gaiteiros por uma vida! A morte da Rainha fecha um ciclo histórico para toda uma nação que foi a nossa primeira aliada, ainda que nos tivesse levado um braço quando só lhe pedimos a mão. O império foi, nos últimos cinco séculos, o conceito central em que assentaram a economia, a política e a cultura das ilhas britânicas, numa história dominada por três rainhas: Isabel I, Vitória e Isabel II. A primeira deu o grande impulso ao império, ajudada em boa medida por piratas da laia de Francis Drake, que exploraram novas terras na América e cujas pilhagens os elevaram à mais alta nobreza britânica, enquanto a literatura e as artes floresciam sob a mais brilhante das estrelas, William Shakespeare. Mas foi com Vitória, no século XIX, que o império britânico se expandiu e consolidou, da Índia a África, um projeto e uma visão em que "o sol nunca se punha".

Acontece que a história ensina que não há império que sempre dure, e quando a jovem Isabel se fez rainha o britânico já tinha os dias contados. Durante a Segunda Guerra Mundial, foram os britânicos que, em nome da liberdade, da democracia e da autodeterminação lideraram o esforço internacional para derrotar o nazismo.

Não foi de estranhar que outros povos, que tinham vivido debaixo da bandeira britânica, exigissem então os mesmos direitos. E foi assim que, logo depois da guerra, Isabel II presidiu ao progressivo desabar do império erguido pelas suas antecessoras, mantendo embora a Commonwealth, uma organização que junta meia centena de países debaixo da mesma coroa, o cimento de uma conexão histórica, uma língua e a imagem de uma identidade partilhada.

A capacidade de Isabel II para gerir turbulências foi ainda mais evidente na política interna britânica. Durante sete décadas conheceu bem e lidou com 15 primeiros-ministros que, por junto, abarcaram mais de um século - de Winston Churchill, nascido em 1874, a Liz Truss, nascida em 1975. Todos os dias a rainha recebia um relatório pessoal do Parlamento, e todas as semanas recebia o primeiro-ministro de turno. Destes, todas as autobiografias coincidem num ponto: a sabedoria e sensatez de Isabel e a sua total discrição.

São essas virtudes que mais falta fazem agora aos britânicos, diante dos enormes desafios que enfrentam, perante fragilidades que ficaram mais expostas com a pandemia e a guerra na Ucrânia. O Brexit acelerou o declínio económico e ameaça a própria unidade do Reino Unido. Em Edimburgo, o governo de nacionalistas escoceses apressa-se a convocar outro referendo para a independência, enquanto os unionistas da Irlanda do Norte, com o apoio da primeira-ministra Truss, querem romper os Acordos de Sexta Feira Santa e causar novos danos aos vizinhos da União Europeia. Também a nós, portanto. A Rainha ainda vai a enterrar e - desconfia-se - depois dela é que vão ser elas: haverá pelo menos mais um gaiteiro no desemprego.


Jornalista

Diário de Notícias
www.dn.pt