Perante a anunciada queima de exemplares do Alcorão, "represália" prévia de um pastor americano à hipotética construção de uma mesquita junto ao Ground Zero, por todo o Ocidente inúmeras almas horrorizadas perguntaram: o que aconteceria se muçulmanos queimassem a Bíblia ou a Tora? .A resposta é simples: nada. Não conheço casos em que tenham sido incinerados os livros sagrados de cristãos e judeus, mas ocorrem-me alguns casos recentes em que os servidores do Islão atearam fogo a numerosos cristãos e judeus propriamente ditos, além de ateus, budistas, xintoístas, animistas e, imagine-se, muçulmanos que se encontravam ao alcance das explosões perpetradas por "mártires"..A diferença passa justamente pelo "martírio". Quer concretize ou não a ameaça (à hora a que escrevo, parece que não), ninguém, ou quase ninguém, louvará o dúbio heroísmo do tal pastor da Florida, que exerce numa igrejinha exótica e, nem de propósito, dá pelo nome de um dos Monty Python, Terry Jones. Pelo contrário, aqueles que assassinam em nome de Alá contam com o apoio, o incentivo e, após consumação do acto, o agradecimento de tantos dos seus parceiros de crença e líderes espirituais..A desigualdade é de facto notável. Nós temos um excêntrico que promete atirar papel para o fogo; eles têm milhares (ou milhões) de criaturas desejosas de ver arder cada infiel à superfície da Terra. Nós ficamos alarmadíssimos com o excêntrico; eles prometem vingar-se de todos os que o rodeiam. Nós tentamos compreender as causas do ódio alheio e não esquecemos que este não representa o famoso Islão "moderado"; eles não tentam compreender coisa nenhuma e o Islão "moderado" costuma esquecer-se de moderar seja o que for..No primeiro aniversário do 11 de Setembro, aliás, o jornalista Thomas L. Friedman avisava no New York Times que "se não houver uma luta dentro do Islão sobre regras e valores, haverá uma luta entre o Islão e nós". Friedman não previu a possibilidade de uma capitulação total do Ocidente, que vive aterrado a evitar o lançamento de Alcorões para a fogueira. Nove anos após 2001, eles defendem a uma voz o Islão. E nós, fora uma minoria desprezada e uns equívocos bizarros, também. Não há luta, pois..Segunda-feira, 6 de Setembro.O pior amigo do cão.Finalmente gostei tanto de uma declaração de Morrissey quanto gosto de alguns dos seus discos. O cantor inglês, hoje menos conhecido pelas canções do que pelas atoardas, afirmou que o tratamento que os chineses dedicam aos cães faz deles, os chineses, não os cães, uma subespécie. Num instante, associações anti-racismo acharam a frase uma generalização ofensiva. No máximo, acho-a uma restrição ofensiva..Se a nação com mais habitantes atinge picos de crueldade no modo como lida com os cachorros (alguma culinária local exige que se esfole os bichos vivos), a tendência infelizmente não lhe é exclusiva. É preciso não esquecer que a religião com mais aderentes associa os cachorros a Satanás (e por isso é vulgar cortarem-lhes pedaços por diversão) e que, mesmo na civilização, são frequentes atitudes pouco civilizadas: tortura, desleixo, abandono, etc. .O que não é frequente, por exemplo em Portugal, é ver na cadeia os responsáveis por esses mimos, uma miragem que não se alcança com manifestações, protestos, petições ou vigílias. Sobra a acção individual, sem influência na lei mas decisiva na consciência. Recentemente, soube que os rafeiros desaparecidos de um meu familiar eram, afinal, vítimas do dono, que os abatia a tiro quando já não serviam para a caça. E, sem proclamações nem pompa, decidi deixar de lhe falar..Se não afastam a escumalha do nosso convívio, compete-nos afastarmo-nos da escumalha. Em matéria de cães, que como um pensador ilustre sabia, nos dão a única amizade absolutamente pura, e no resto..Terça-feira, 7 de Setembro.Portugal dos pequenitos.Um madeirense, Renato Barros, comprou em 1990, por 9 mil contos antigos, o ilhéu da Pontinha, um calhau com um forte e vestígios arqueológicos situado no porto do Funchal. Hoje, solicita às autoridades nacionais que reconheçam ao território de 187 metros quadrados o estatuto de estado independente. O sr. Barros alega fundamentar-se na alienação do domínio do calhau realizada, aquando da venda original, em 1903, "pelo último rei de Portugal, D. Carlos I". .O sr. Barros não será um exegeta da história pátria (D. Carlos foi o penúltimo rei), mas esse é pormenor desculpável em quem, de qualquer modo, não quer ser português. Também não importa que, no requisito enviado às altas figuras da nação, invoque o direito à autodeterminação dos povos e o povo da Pontinha conste apenas de quatro pessoas (o sr. Barros, esposa e filhos, presumo). .Visto que o homem quer transformar o calhau num principado e ser o respectivo príncipe, convinha que o tomássemos menos como maluco e mais como modelo. Afinal, poderá passar por aqui a solução para um país que diariamente se afunda para lá do razoável e, pior, do reversível..Dado que enquanto colectivo comprovadamente não vamos longe, resta a hipótese de cada um chegar a algum lado por conta própria. Che Guevara, um demente célebre, exigia a criação de um, dois, três, mil Vietnames. O ideal, no nosso caso, é criar um, dois, três, imensos principados semelhantes ao da Pontinha, numa vaga de independências que retalhe Portugal em pedacinhos e deixe o destino dos agregados familiares à responsabilidade dos mesmos. .E se o exemplo do calhau do Funchal, que exibe um proprietário com a "neurose" (sic) das energias "renováveis", passado histórico, péssimos recursos humanos e produtividade nula, não promete muito, não há que desanimar: o país possui características iguaizinhas e a desvantagem de nos arrastar a todos na desgraça. O calhau desgraça-se sozinho, ou quase, se atendermos aos quatro aristocratas que o habitam..Quinta-feira, 9 de Setembro.Os liberais a que temos direito.Na mesma semana em que me vejo obrigado a concordar com Fidel Castro (o qual, em entrevista à Atlantic, constatou o falhanço do modelo económico cubano, defendeu o direito de Israel a existir e considerou o Irão nuclear um perigo), também dei por mim a concordar com o PCP no que toca às relações do Governo com o maior partido da oposição, se é que a palavra "oposição" define a atitude do actual PSD..Embora partilhar as opiniões de comunistas me custe tanto quanto remover as amígdalas sem anestesia, numa coisa os camaradas têm razão: as dissidências entre o PS e o actual PSD, a propósito do Orçamento para 2011, são, como vem sendo habitual, uma encenação relativamente elaborada e obviamente inconsequente. Quando for necessário (para quê e a quem?), e ainda que envolto num embrulho ficcionado de cedências e sacrifícios, o acordo chegará. .Noutra coisa, porém, o PCP está enganado (está enganado em inúmeras, mas enfim): ambos os partidos do chamado arco governativo não se juntaram para elaborar qualquer política de direita. As políticas do PS, que o actual PSD acaba sempre por avalizar, podem ser insensatas, perigosas, daninhas ou apenas idiotas. De direita é que não são. .A menos que agora seja de direita defender, com requintes de fanatismo e ao contrário de todos os países europeus em pré-falência, a manutenção suicida da despesa pública. Ou os insondáveis benefícios do "investimento" de iniciativa governamental. Ou o assalto aos "ricos" (de facto, uma classe média em apuros) mediante imparáveis impostos. Ou a "aposta" inútil e desonesta nas energias "renováveis". Ou a invocação de uma compaixão "social" desacreditada pela realidade. Ou, em suma, o infatigável e bem sucedido esforço para aumentar o peso do Estado, que jamais foi leve, e destroçar de vez a economia..Não espanta que o PCP contemple o socialismo em vigor e o considere insuficiente. Já espanta um bocadinho que o actual PSD, descontadas as ameaças da praxe, no fundo ache que está bem assim. E espanta muitíssimo que o dr. Passos Coelho passeie por aí, não sei com que fim ou fundamento, o estatuto de "liberal". Liberal em quê?.O senhor televisão.Desde a leitura da sentença do processo Casa Pia que Carlos Cruz não sai das televisões e da imprensa escrita, graças a uma quantidade interminável de entrevistas só comparáveis às protagonizadas também por Carlos Cruz em 2002 ou 2003, aquando da primeira vez em que o seu nome foi citado no caso. Em ambas as ocasiões, o apresentador usou e abusou dos meios ao dispor a fim de provar a sua inocência. Conseguiu-o? Duvido. Conseguiu, certamente, provar que quem constrói um nome nos media conta sempre com os media para se defender, um direito que evidentemente lhe assiste, mas um direito que assiste a poucos. O que dá a tudo isto um arzinho de privilégio assaz distante da empatia que Carlos Cruz pretende, com tudo isto, suscitar.