Os filmes do autarca que despejou a Refood
A indignação chegou na voz do presidente da junta de Santa Maria Maior, indignando-se em nome dos seus fregueses por uma produção da Netflix ousar pensar em atravessar Alfama, Baixa, Chiado, Castelo e Mouraria. Ao fim de três meses a lidar com o choque - digestão difícil, já que a a informação lhe chegou em novembro -, Miguel Coelho decidiu partir agora para a contestação pública das oito noites de rodagem, desagradado com "a transformação da freguesia em estúdio cinematográfico", fadada a incomodar moradores, fechar quarteirões e alterar o trânsito. Ainda mais para gravar cenas que só dão "maus exemplos", incluindo tiros, carros a bater ou perseguições de motos.
Acredito que a preocupação lhe vem da má experiência que deve ter tido com produções aqui realizadas nos últimos anos, filhas do êxito dos programas de incentivos lançados pelo governo de Costa e pela autarquia então liderada por Medina. Louvados por todos, aparentemente foram um pesadelo para o presidente da Junta, com gritos a rasgar a noite, multidões em roupas garridas a cantar e a dançar pelas ruas da Praça do Comércio ao Elevador da Bica, perseguições e acidentes de carros até em pontes históricas e motos lançadas escadas abaixo. Que resultaram em filmes e séries como Comboio Noturno para Lisboa (2012) e La Casa de Papel (2021) e em megaproduções de Bollywood como War (2018) ou Paisa Vasool (2017).
Está Miguel Coelho porventura receoso, porque recorda notícias de um fogacho no Convento de Tomar aquando das filmagens de O Homem que Matou D. Quixote (em exibição nos cinemas) - negados quaisquer estragos por funcionários e conservadores do monumento - ou talvez queira evitar o regabofe que se fez em Idanha-a-Nova quando a prequela de A Guerra dos Tronos chegou ao Castelo de Monsanto (2021).
Que importa o interesse económico e turístico despertado pela indústria cinematográfica para o país face à paz de espírito dos seus 1700 eleitores? O que vale a riqueza gerada e o potencial de investimento para Portugal, se vão fechar o trânsito e fazer uma barulheira? Para este autarca, não vale tudo! Que o digam os voluntários da Refood, expulsos por Miguel Coelho há cinco anos do espaço que o próprio autarca lhes cedera uns meses antes para dali distribuírem refeições aos pobres.
Agora, opõe-se a esta ideia de trazer a Lisboa estrelas de cinema, de potenciar a riqueza e a recuperação do país e ainda ter os seus bairros a aparecer nos ecrãs do mundo inteiro, com risco de captar a atenção de turistas. E ninguém o cala. Não que alguém lhe tenha perguntado ou precise de fazê-lo.
Nunca o fez Medina, reconhecendo os benefícios trazidos a Lisboa com "a melhoria dos prazos de licenciamento para filmagens e a criação da Lisboa Film Commission, medidas adotadas pelo município para apoiar e agilizar a realização e produção de projetos cinematográficos e audiovisuais, promovendo e divulgando o património histórico e cultural, atraindo investimento nacional e internacional e apoiando a dinamização e modernização da sua base económica". Nem o fez Moedas, a quem cabe agora autorizar as gravações, e que frisou a importância de "ter grandes organizações internacionais interessadas em projetar a nossa essência, uma oportunidade que Lisboa não pode recusar", que ajudará a repor-nos como "grande referência europeia e verdadeira cidade do mundo". Tão pouco o quis ouvir o governo, que em 2018 lançou, através do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), tutelado pelo Turismo de Portugal, o Cash Rebate, programa de benefícios fiscais para atrair estes investimentos.
Até a pandemia aqui chegar em força, foram apoiadas 49 produções cinematográficas em Portugal, num investimento de 58 milhões de euros. Entre o sucesso de Jab Harry Met Sejal em 2017, que trouxe o realizador Imtiaz Ali e o seu elenco às ruas da Mouraria, e 2019 o número de hóspedes indianos em Portugal cresceu 82%. "Conseguimos atrair não apenas os atores e equipas de produção, que vêm aqui durante algum tempo (...), também damos emprego aos nossos técnicos e atores", lembrou então o ministro Siza Vieira, enaltecendo aquele que se tornou no "fundo europeu mais competitivo em termos de captação de filmagens". Em agosto de 2020, o Turismo de Portugal fazia as contas ao que ainda estava para vir: 24 candidaturas, com um potencial de mais 30 milhões de investimento.
Aparentemente, tudo isto vale pouco para o presidente da junta de Santa Maria Maior. O absurdo da oposição pela simples oposição ao presidente da Câmara de Lisboa bate novos recordes todas as semanas. Mais dia menos dia, os lisboetas vão irritar-se - e não será com Moedas.