Os filmes clássicos e modernos que nunca esqueceram o Natal
Dos estúdios de Hollywood às grandes cinematografias europeias, dos artifícios mais ou menos musicais do cinema clássico às proezas digitais dos modernos desenhos animados, os filmes nunca esqueceram o Natal. Muitas vezes, propondo variações familiares sobre as suas componentes tradicionais; noutros casos, inspirando-se em factos verídicos para celebrar o espírito natalício - entre as muitas possibilidades cinéfilas, aqui fica um roteiro de filmes que vale a pena rever ou, se for caso disso, descobrir.
AS ESCOLHAS DE JOÃO LOPES
Música no Coração, de Robert Wise, com Julie Andrews e Christopher Plummer
Ironia cultural, perversão cinéfila: o célebre Música no Coração não é um filme de Natal. Não o é, pelo menos, no sentido tradicional, já que as atribulações da noviça Maria (Julie Andrews) no seio da família austríaca do austero capitão Von Trapp são uma derivação do clássico melodrama de guerra, contaminado pelas componentes do género musical. Através de um hábito em grande parte induzido pelas televisões de todo o mundo, transformou-se num filme "para" o Natal (depois, com todas as derivações que o DVD e o Blu-ray vieram criar). Talvez por isso, há um tique, também ele cultural, que leva crentes e descrentes a demonizar Música no Coração: outra vez não... Em nome da sensatez ecuménica que a quadra impõe, digamos que a realização do veterano Robert Wise merece uma admiração sem preconceitos, até porque foi um dos derradeiros e mais brilhantes exemplos de aplicação de matrizes do musical que, em boa verdade, Hollywood estava a abandonar. Os tempos eram, aliás, de profundas transformações, não necessariamente de espírito natalício. Por um lado, em 1965, os grandes estúdios continuaram a apostar em superproduções como Doutor Jivago, de David Lean, conciliando epopeia e espetáculo; por outro lado, este foi também o ano em que surgiu a comédia Que Há de Novo, Gatinha?, de Clive Donner, primeiro argumento de Woody Allen a ser transformado em filme. Isto sem esquecer que o herói do momento era Sean Connery, aliás, um agente secreto de nome James Bond, numa aventura intitulada Thunderball.
Não Há Como a Nossa Casa, de Vincente Minnelli, com Judy Garland, Margaret O"Brien e Mary Astor
Para sabermos o que é o espírito tradicional do Natal precisamos de escutar Judy Garland a cantar Have Yourself a Merry Little Christmas... Tendo por pano de fundo a Exposição Mundial realizada em St. Louis, Missouri, em 1904, esta é uma puríssima celebração de um sentido comunitário realmente agregador que se diz através das canções e dos artifícios do musical. Dirigido com mão de mestre por Vincente Minnelli, nele encontramos a maravilhosa Margaret O"Brien (então com 7 anos), exemplo de uma representação da infância que sentimos, de uma só vez, como genuína e universal.
Feliz Natal, de Christian Carion, com Guillaume Canet, Benno Fürmann e Diane Kruger
Na noite de Natal de 1914, a guerra que assolava a Europa foi interrompida de modo insólito: durante algumas horas, elementos dos exércitos francês, britânico e alemão cumpriram umas breves tréguas (não oficiais), celebrando o espírito humanista da data. Baseado em factos reais, há qualquer coisa de envolvente e surreal neste ritual teatralizado (canta-se ópera...) que Christian Carion filma metodicamente, com a aparente frieza de quem está a fazer uma reportagem. Representou a França nas nomeações para o Óscar de melhor filme estrangeiro de 2005, mas não ganhou.
AS ESCOLHAS DE RUI PEDRO TENDINHA
O Estranho Mundo de Jack, de Henry Selick
Ver cinema em família no Dia de Natal. Corre o "rumor" que é uma experiência muito portuguesa. Por estes dias, cada vez mais, o filme tem de ser realmente hipnotizador para reunir e para manter várias gerações num sofá, sobretudo face aos vícios do telemóvel. Talvez por isso, um objeto como The Nightmare before Christmas, produzido e imaginado por Tim Burton, possa servir como teste certificado para uma sessão natalícia. Acima de tudo, esta fábula que nos coloca em Halloween Town, é uma interrogação perspicaz sobre o espírito do Natal. Não é por acaso que o nosso herói, Jack The Skellington, quer gostar e compreender essa coisa chamada Natal.
Tim Burton como que reinventa a tradição do Natal ao ponto de encenar o rapto do Pai Natal. Uma ideia potencialmente transgressiva, mas que, segundo o seu esquema de imaginário, funciona como uma alternativa feliz aos habituais contos da época. A burtonizição do Natal é também um convite a uma diversidade de modos e de comportamentos. Celebra-se o Natal com figuras negras, com os "monstros" que, afinal, têm coração. E o Natal segundo Tim Burton tem sombras, negritude e uma visão poética entre o mundo dos mortos e o dos vivos. E tem sobretudo canções de Danny Elfman que nunca saem do ouvido, perfeitas para servir de pano de fundo para bailados coreografados em animação stop motion com um sentido elegante único. Uma delícia que fez que a Disney percebesse de uma vez por todas que poderia haver este caminho nos domínios da animação.
O Falso Duende, de Jon Favreau, com Will Ferrell e Zooey Deschanel
Pensar numa história de Natal e conseguir incorporar o humor excêntrico de Will Ferrell e da sua estética SNL. Do improvável nasceu uma das poucas comédias natalícias de Hollywood capaz de cruzar públicos, conseguindo ainda misturar registos (da ternura ao burlesco). Ferrell como um homem desproporcionado que viveu no mundo dos elfos é um trunfo de humor expansivo. Foi este o filme que o tornou um dos maiores comediantes americanos contemporâneos. Jon Favreau nunca mais voltou a ser tão preciso no tom. Elf talvez tenha sido um acidente de Hollywood, mas ainda hoje é capaz de nos fazer chorar a rir.
Toy Story - Os Rivais, de John Lasseter
O pai de todos os filmes de animação de Natal. Não há amor como o primeiro...Toy Story foi o começo da bela história da Pixar. Estávamos em 1995 e a partir daí a animação digital revolucionou o modo como Hollywood pensou o cinema feito por desenho a computador. A história da amizade e união entre um grupo de brinquedos de uma criança continua a comover e a fazer-nos sorrir. Um conto sobre o poder da amizade edificado como cinema de aventuras e embalado como um drama extremo onde todos os momentos são vitais. John Lasseter criava algo verdadeiramente refrescante, algo que, passe o cliché, fascinava miúdos e graúdos.
AS ESCOLHAS DE INÊS N. LOURENÇO
Fanny e Alexandre, de Ingmar Bergman, com Ewa Fröling, Bertil Guve e Pernilla Allwin
"O nosso Natal era sempre uma autêntica explosão de prazeres encenados com mão de ferro pela minha mãe. Tinha de haver uma organização incrível para que toda aquela orgia de hospitalidade e de refeições funcionasse." Exatamente por estas palavras escritas na autobiografia de Ingmar Bergman - Lanterna Mágica - se podem definir as primeiras longas sequências de Fanny e Alexandre: momentos de alegria orquestrada, entre adultos e crianças, numa sala faustosa e acolhedora. Esta é a obra-prima que o cineasta chegou a anunciar como o seu último filme, e que seria a maior produção do cinema sueco até esse ano de 1982, com cerca de 1200 figurantes Um trabalho robusto que curiosamente é o seu título mais íntimo e biográfico, vencedor de quatro Óscares da Academia. Fanny e Alexandre não é um filme natalício no sentido comercial do termo, mas sê-lo-á no discreto tom otimista que se assume no olhar das crianças, aqui transmissoras de uma fantasia nostálgica. Numa cena particularmente evocativa da infância de Bergman, temos essas crianças reunidas à volta de um projetor, no quarto escuro, para verem as imagens da história que o pequeno Alexandre está a contar. E apesar das tragédias e dos pesadelos familiares, marcados pelo puritanismo religioso da figura paternal, é "entre a magia da vida e as papas de aveia", "entre um medo desmesurado e uma alegria sem limites" que Fanny e Alexandre nos deslumbra. Assim descreve Ingmar Bergman a infância, esse Natal eterno, subterfúgio humanista.
Eduardo Mãos de Tesoura, de Tim Burton, com Johnny Depp, Winona Ryder e Dianne Wiest
Inspirado no sonâmbulo de O Gabinete do Dr. Caligari (1920), Eduardo Mãos de Tesoura é das mais belas e memoráveis criações do universo Tim Burton. Personagem expressionista referencial de um então jovem Johnny Depp, ele é o centro deste conto de fadas sombrio e fantástico, que o Natal, em pano de fundo, torna mais caloroso. Este é o retrato de um ser artificial provido de uma alma de artista: com as suas mãos de lâminas ele faz um anjo de um bloco de gelo ou um dinossauro de um arbusto. E através da sua gentileza e inocência traz magia e pureza aos corações. Incluído o do espectador.
Natal Branco, de Michael Curtiz, com Bing Crosby, Danny Kaye e Rosemary Clooney
Este foi o primeiro filme de Hollywood com projeção no sistema VistaVision (ecrã panorâmico), filmado num glamoroso Technicolor, com músicas de Irving Berlin e coreografias, não creditadas, de Bob Fosse. Um clássico romântico de Michael Curtiz, que conjuga a sofisticação tecnológica com os valores dos grandes musicais e um colorido espírito natalício. No rasto de Holiday Inn (1942), de Mark Sandrich - esse com Crosby e Astaire -, é a história de dois homens que se conhecem durante a Segunda Guerra Mundial, tornando-se depois uma dupla de sucesso com os seus números de canto e dança.