Os festivais literários como máquina de lançar livros
A agenda do Festival Literário da Madeira já tem meia dúzia de apresentações de novos livros anunciadas, mas nas recentes Correntes d"Escritas aconteceram 30 sessões e no Folio, o festival de Óbidos, o número deverá ser superior. Ou seja, os inúmeros festivais literários nacionais tornaram-se uma das peças principais da máquina de divulgação de novidades que as editoras apresentam e estas estão bem atentas para marcar presença no máximo de eventos. Principalmente a nível de autores estrangeiros, já que é mais fácil trazê-los a Portugal para esses eventos durante as digressões mundiais de promoção de novos livros, como é o caso do "eremita" japonês Haruki Murakami, que vem à Noruega após o verão e a organização do Festival Internacional de Cascais está a tentar a todo o custo tê-lo numa das sessões. Ou de Adam Johnson, o Pulitzer de 2014, que vai ao Funchal dentro de duas semanas, na semana em que a Prémio Nobel de literatura de 2015, Svetlana Alexievich, é a cabeça de cartaz.
Tal como os festivais de música, também os literários tornaram-se o momento para apresentar aos leitores as grandes estrelas internacionais, mesmo que os autores de língua portuguesa não fiquem esquecidos e até sejam catapultados para a primeira linha dos nomes que mais atraem leitores. É o caso de Afonso Cruz, presença regular em vários; de Gonçalo M. Tavares, um nome sempre cobiçado; mais recentemente, Frederico Lourenço no rescaldo do sucesso da sua tradução da Bíblia, ou no âmbito da lusofonia, Mia Couto, Agualusa e Ondjaki, sempre bastante desejados.
Não são, no entanto, apenas estas estrelas estrangeiras que atraem leitores às sessões, e isso viu-se no primeiro grande festival do ano: as Correntes d"Escritas. Onde duas dezenas de portugueses estiveram a apresentar as suas novidades. Desde o cantor Sérgio Godinho com um primeiro romance ao professor Onésimo Teotónio Almeida, com um novo ensaio.
É o caso do escritor Rui Zink, que foi à Póvoa de Varzim para lançar O Livro Sagrado da Factologia. A sessão contava com um outro autor, o brasileiro Alexandre Rodrigues, que não resistiu ao impacto do espetáculo de Zink perante uma plateia sempre curiosa pela sua obra. A sinopse do seu livro condensa 332 páginas numa única frase: "Este romance responde à mais crucial questão do século XXI. A saber: o futuro vai ser bem ou mal passado?" É uma provocação que Zink considera de uma grande "candura" pois o tema do livro "é uma modesta parábola sobre o futuro". Não quer dizer que o leitor seja esclarecido definitivamente ou, diz, "se o ficar, é sinal de que o livro é mau". Remata: "Romance que se preze estará sempre ao lado da dúvida e não da certeza. Eu diria até que a religião da literatura é a dança da dúvida."
Quanto ao título, Rui Zink explica que é como todos os seus: "A um só tempo trágico e cómico. Vem na sequência de O Halo Casto (2001) ou A Instalação do Medo (2012). Espero que convoque várias memórias porque o século XXI está, em algumas das suas facetas, a lembrar mais a Idade Média que os dois séculos que o antecedem." Quando se questiona se após décadas de carreira literária, os leitores ainda merecem um esforço de um novo livro, a resposta é clara: "Se achar que não, o melhor é fechar a loja. Gosto muito deste jogo de gato e rato com o leitor, sobretudo porque nunca sei qual é qual. Então agora que os meus livros chegam a países exóticos como a Índia ou a França, mais estimulado me sinto."
Distante da celebridade pública de Rui Zink, dois outros autores também aproveitaram o evento mediático das Correntes para promover os seus livros novos. É o caso de Paula de Sousa Lima, a única escritora açoriana que reside lá e é publicada por editoras do continente. Mais, o romance que a levou à Póvoa, O Paraíso, foi o único aceite entre as quatro centenas de originais da última edição do Prémio Leya para apresentar ao júri. Para seu desgosto, "morreu na praia", pois o júri decidiu não atribuir prémio.
O romance finalista não reflete os Açores, segundo esclarece: "Lá vive-se uma certa clausura e religiosidade, mas isso não influencia o romance." Não nega que haja "qualquer coisa genuína da sua vivência que trespassa" mas "não me sinto obrigada a falar de coisas regionalistas. Não gosto, isso é o que lá chamamos a poesia do mexilhão: o mar, os vulcões, as baleias. Não é por aí, eu sou mais para o mundo". O romance passa-se numa aldeia algures fora dos Açores e só se reconhece alguma influência por causa dos nomes: "Agora é diferente, ninguém se chama como um dos meus personagens, o Carrocinha mas Vanessa ou Cátia." O plano para um romance ocupa-lhe uma página, o resto é criação: "Os meus livros não são muito certinhos, mas tenho uma noção do que quero escrever após aparecerem ideias nebulosas e antes de ficarem maduras."
António Brito também foi apresentar o seu Irmão de Armas à Póvoa, um novo livro que faz parte de uma grande análise ao tempo da guerra colonial que já vai no quinto título: "Não são livros apenas de ficção, têm muito da minha experiência em África". Não pretende passar mensagens políticas sobre aquela época, mas relatar e refazer um período da história mais recente que está em muito esquecida e que conhece bem por experiência: "Neste, quis contar a história de cinco militares". Uma temática que ainda tem um público leitor superior a meio milhão de ex-combatentes, mesmo que às vezes seja "revivalista".
"Há um ambiente de celebração nos lançamentos"
Entrevista a Anabela Mota Ribeiro
Entre as apresentações de livros que decorreram no festival literário da Póvoa de Varzim estava a da aguardada investigação de Anabela Mota Ribeiro, A Flor Amarela. Resulta de uma tese universitária sobre um dos nomes maiores da literatura brasileira e da língua portuguesa, Machado de Assis, um interesse ensaístico que é muito raro verificar-se entre os investigadores e académicos nacionais.
Porquê a "revelação" de A Flor Amarela nas Correntes?
A Flor Amarela resulta da minha dissertação de mestrado, na Universidade Nova, com orientação de João Constâncio e Abel Barros Baptista. Faz dois anos que concluí a sua redação. Não tinha ainda concluído o texto quando encontrei o Francisco José Viegas que me disse: "Sei que estás a trabalhar Machado de Assis, quando estiver pronto, quero publicar na Quetzal". Esta confiança, manifestada assim, sem ler uma linha, ajudou-me, e sou-lhe grata. O assunto foi retomado meses mais tarde e pensou-se, desde cedo, que a publicação deveria acontecer em Fevereiro de 2017, nas Correntes. É bom notar que eu tinha em mão dois outros projetos de fôlego: o livro de entrevistas Paula Rego por Paula Rego, já previsto para o outono de 2016, e, antes disso, uma longa conversa em livro com Maria de Sousa, Este Ser e Não Ser, para assinalar os 50 anos de uma descoberta feita pela cientista.
As apresentações públicas ainda contam para o sucesso dos livros ou é por obrigação?
Gostei muito da apresentação pública nas Correntes, porque isso me permitiu ter a leitura de Carlos Mendes de Sousa, professor da Universidade do Minho, especialista em Clarice Lispector e não só, sobre a Flor. Do mesmo modo, anseio pela apresentação em Lisboa, dia 8, porque quero ouvir o Gonçalo M. Tavares. Há um ambiente de celebração de que gosto nos lançamentos. Há também este prazer da descoberta, do encontro, de ouvir o que nos desafia e entra em diálogo com o nosso trabalho.
Houve muitos leitores que na altura não compreenderam o livro. Como foi a sua relação com o romance?
Memórias Póstumas de Brás Cubas não foi o meu primeiro Machado de Assis; já tinha lido contos e Dom Casmurro. Há um estranhamento que nos domina após a leitura e que resulta, penso, do dispositivo romanesco - do facto de serem umas memórias póstumas, escritas por um "defunto autor", do estilo ébrio e de suspensórios baixos, como afirma o autor -, do movimento pendular entre o ímpeto e a melancolia, eros e tanatos. A primeira vez que o li, foi na faculdade: fiz uma disciplina de opção livre com Abel Barros Baptista. O assombro foi enorme.
As Memórias Póstumas de Brás Cubas é o tipo de livro que contém soluções literárias que perdoamos aos clássicos mas hoje não aceitaríamos aos contemporâneos?
Surpreende-me muito a audácia, a liberdade imensa de Machado de Assis, compondo um romance com estas características em 1880. Parece que não pertence a nenhuma genealogia ou tradição literária, que se gera a si mesmo. Seria tremendo se não aceitássemos soluções literárias desabridas, onde a facécia e o amargo têm lugar, se não reconhecêssemos o génio. Ou seja, se nos fechássemos ao novo, à subversão.
Ao estudá-lo manteve o fascínio que a levou ao romance ou desiludiu-se?
Diria que, ao contrário, as leituras continuadas aumentaram o meu fascínio. É isso que me faz, por exemplo, prosseguir o estudo de Machado, agora no doutoramento. Brás Cubas é um romance misterioso, que podemos estudar, estudar, sem alguma vez exaurir. E fui percebendo que somos nós, o humano que falha e anda em desacerto com a vida, que está ali. Sou de riscar muito, escrever sobre a margem. A dada altura, mudava de exemplar, porque precisava de uma página sem os vestígios das leituras anteriores. Numa das vezes, decidi ler de trás para a frente, o último capítulo, o penúltimo, o antepenúltimo, para perceber se a atmosfera era distinta. O próprio romance começa de trás para a frente, porque, para Brás Cubas, "a campa foi um outro berço". Um dos aspetos mais desafiadores do livro tem que ver com este sabotar das noções de princípio e fim, vida e morte, com a subversão das noções de tempo e de espaço.
A não ser o caso de alguns investigadores universitários, o "investimento" nacional no estudo das grandes obras escritas em língua portuguesa noutros países é muito pouco. Porque abriu uma exceção?
Estudei Machado de Assis porque o admiro profundamente, porque me desafia, porque tive a oportunidade de o fazer acompanhada por grandes professores. Não é despiciendo o veio filosófico de Machado de Assis, e o meu mestrado é em Filosofia - variante Estética.
A Flor Amarela era o único título possível?
O título académico era impensável para um livro! Gigante. O livro tem como subtítulo Ímpeto e Melancolia em Machado de Assis, que são as minhas âncoras. A expressão inteira usada por Brás Cubas é "flor amarela e mórbida da melancolia". A Flor Amarela pareceu-me um título-síntese poético e ajustado à minha investigação.