Os escritores que voam do trivial ao sublime
Um homem sai de casa para o trabalho. No caminho, deteta um furo no pneu do carro. Enquanto procede à mudança, as mãos enchem-se de óleo e a aliança de casado escorrega-lhe do dedo. Desajeitado, ele pontapeia o anel quando procura recuperá-lo e assiste, impotente, ao seu desaparecimento numa sarjeta. Imagina-se a contar a história, verdadeira, à mulher. E antecipa a reação dela, diante daquela sucessão de peripécias - ela não quer passar por parva nem ingénua, acusa-o de a ter enganado e tirado a aliança por causa de uma qualquer amante e de uma tarde passada num motel de alta rotação e baixa reputação. E pode ser o fim do casamento. Assim, quando chega a casa e a mulher nota a ausência da aliança, ele avança para a explicação - tirou-a enquanto esteve, acompanhado, num motel e perdeu-a. A mulher amua, chora, fecha-se no quarto. Passado algum tempo, regressa e parece disposta a esquecer o episódio. Chega a mostrar-se grata: ao menos, ele não lhe mentiu... Em síntese, sem os pormenores que transformam este esqueleto num corpo narrativo bem torneado e apetecível, fica aqui resumida a "lógica do improvável" que parece nortear os curtos mas suculentos contos que dão forma a dois livros de Luis Fernando Veríssimo, um agora regressado, o outro acabado de chegar: As Mentiras Que os Homens Contam, originalmente publicado em 2000, e As Mentiras Que as Mulheres Contam, lançado em 2015 no Brasil.
Veríssimo, nativo de Porto Alegre recém-chegado aos 80 anos, filho de Érico Veríssimo, é um pensador, mais do que tudo. Recorreu cedo à escrita, provavelmente em nome de uma timidez que o leva a "apagar-se" como conversador, ganhou as asas da imortalidade encostando-se a um humor que, na maioria das situações, não esconde um travo agridoce. Criou figuras como o inimitável Analista de Bagê, como Ed Morte ou Dora Avante (ler rápido e em voz alta, s.f.f.). Acima de tudo, é um meticuloso observador do ser humano e um apóstolo da ideia de que são os pequenos pormenores que definem com rigor um homem ou uma mulher, não as grandes tiradas. Nestes dois livrinhos, intervalados por 15 anos, período necessário para que o autor pudesse - em plena forma e com conhecimento de causa reforçado - aplicar a justiça distributiva face ao fenómeno da mentira, umas vezes "branca", outras tantas muito colorida, o escritor acotovela géneros, da crónica de costumes à sátira, do absurdo delirante a algumas razias (irónicas, conceda-se) ao neorrealismo, sem nunca esquecer que a tragédia e a comédia são mesmo vizinhas e muito próximas. Em certa medida, as historietas aqui compiladas funcionam como analgésicos que combatem o cinzentismo do dia-a-dia que, afinal, aqui está pintado com outras cores. Já agora, aquele ou aquela que (sem necessidade de confissão pública, claro) não descobrir aqui os traços de um momento vivido na primeira pessoa merece uma de três sentenças: ou é inconsciente, ou muito distraído, ou pura e simplesmente... mentiroso. As Mentiras, deles ou delas, valem como uma entrada naqueles pavilhões de feira em que os espelhos, côncavos ou convexos, nos devolvem resultados grotescos a partir de uma imagem que é bem real. Ficam especialmente recomendados para outonos e invernos, já que chegam a valer como raios de sol.
As duas faces do anjo
O caso de Nelson Rodrigues (1912--1980), um carioca por acaso nascido no Recife, é bem distinto, se bem que ele também parta da vida de todos os dias. Essa metodologia serve tanto O Homem Fatal, crónicas selecionadas (com responsabilidade de escolha de Pedro Mexia)) a partir de três outros volumes - O Óbvio Ululante, A Cabra Vadia e O Reacionário - e originalmente publicadas no jornal O Globo, entre 1967 e 1973, e A Vida como Ela É..., cujo título é recuperado da coluna que o autor subscreveu, entre 1951 e 1961, no jornal Última Hora (aqui, a seleção cabe a Abel Barros Baptista).
Comecemos pela ficção de A Vida como Ela É..., porventura mais perene do que o "segmento realidade". Cada uma das criações do autor - cuja espantosa biografia, O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro, o mesmo que nos contou as vidas de Garrincha e Carmen Miranda, bem como a "vida" da bossa-nova, se recomenda com entusiasmo - é um achado, um retrato, com retoques de humor, de surpresa, de sarcasmo, de enquadramento, de uma forma que nos permite uma fascinante viagem de reconhecimento pelo Rio de Janeiro e pelos seus subúrbios a meio do século passado. Não há maniqueísmos: cada virtuosa tem o seu pecado, cada malandro tem a sua qualidade. Em 60 histórias (o que pode parecer pouco, se compararmos com a versão da editora Agir, em 2006, que seguiu uma escolha dos cem melhores episódios feita pelo próprio Nelson Rodrigues, mas é de valor inestimável), o jornalista e dramaturgo concilia a leveza necessária do escrito curto com uma definição de personalidades que quase pressagia personagens de uma futura peça. A escrita é, ao mesmo tempo, intensa e fluida, como se pede nestes casos. E, mais uma vez, há pedaços que vão direitinhos à memória futura.
Mais contundente é a abordagem das ideias em O Homem Fatal. Vamos prevenidos pelo prefácio de Mexia, que define o autor como "homem de embirrações e obsessões". Certo - e quem leva para contar? Católicos "modernaços", feministas "misóginas", marxistas de todas as tendências, encenadores teatrais paulistas, Sartre, os insurrectos "acéfalos" do Maio de 68, a(s) estudante(s) de Psicologia da PUC (universidade carioca), D. Hélder Câmara (a quem chamavam o "bispo vermelho"), um tal Dr. Alceu (que merecia ser identificado e contextualizado, bem como outros alvos), as dondocas leitoras de Marcuse ou "amantes espirituais" de Che Guevara. Resumindo: tudo o que cheire a mudança, tudo o que possa conotar-se com o "progresso" que, na ótica do autor, está a matar o Brasil. Sem algum sentido de humor e sem um considerável poder de encaixe pode perder-se de vista a escrita "de arremesso" de Nelson Rodrigues, cheia de deliciosos apartes, e pode não chegar a alcançar a ideia-chave de que o autor tinha o condão de atirar para cada crónica o sangue, as vísceras e os músculos - criteriosamente selecionados - que fazem delas motivo de paragem. Tornam-se mais preciosas num momento em que constatamos que, do lado de cá do Atlântico, são fenómenos raros os cronistas que se mostram capazes de seguir este trilho, sem resvalar para o boçal mas sem escorregar para as meias-tintas do banho-maria. Concordar com o autor? Só muito pontualmente. Apreciá-lo? A cada linha.