Os dois lados de um só Sócrates
Lado A - José Sócrates demonstrou nas negociações do Orçamento do Estado e da Lei das Finanças Regionais que, em política, os braços-de-ferro não se ganham à força. É sempre na definição e na aplicação prática da estratégia que está a chave do sucesso, e nisto o primeiro-ministro tem provado que é dos melhores que Portugal já teve. A forma como jogou nesta crise política e geriu a carta de uma hipotética demissão, tendo na mão um royal straight flush, foi politicamente exemplar. Valeu uma batalha importante e afastou, para já, o cenário de terramoto político. Pelo meio, mostrou que o actual PSD continua a ser um partido pouco sólido e conseguiu até a proeza de pôr Francisco Louça a defender mais dinheiro para Alberto João Jardim com a determinação com que defende os desempregados.
No plano económico, porém, o preço do prolongamento da crise até ao limite deixou Portugal ainda mais vulnerável à pressão dos mercados e a primeira consequência foi a evaporação de mais de 4,5 mil milhões de euros da Bolsa de Lisboa numa só semana.
Mais assustador do que esta hecatombe é o facto de o poker político que se joga, actualmente, entre Governo, oposição e Presidente da República estar para durar. A discussão do OE 2010 e a contagem decrescente para o início do prazo em que Cavaco Silva pode dissolver o Parlamento anunciam um futuro quase tão negro como o que motivou as duas intervenções do FMI em Portugal, no início dos anos 80.
Lado B - José Sócrates voltou ontem a ser apontado como actor oculto de uma trama para controlar a TVI. Desta vez, o argumento é baseado nas escutas do caso "Face Oculta" e constituiu mais um forte rombo na credibilidade do primeiro-ministro. O impacto no futuro político do próprio ainda está por apurar, bem como se as graves revelações conhecidas ontem se ficam por aqui ou se terão sequelas nos próximos tempos. Sócrates optou pela estratégia que tem adoptado sempre que não é envolvido directamente: o silêncio. A proximidade dos escutados à sua pessoa e a acusação de que terá orquestrado uma operação para tomar conta da TVI são, no entanto, impossíveis de contornar. Ainda por cima quando a líder da oposição, Manuela Ferreira Leite, mostrou de imediato que irá fazer o aproveitamento político do caso.
Quando tiveram de pesar as muitas suspeitas lançadas sobre o primeiro-ministro e o seu desempenho enquanto governante, os portugueses foram inequívocos, proporcionando-lhe uma reeleição confortável sem maioria absoluta. Resta saber se José Sócrates terá músculo político e pessoal para uma prova como nunca antes enfrentou: resistir durante tempo prolongado a um soco que concentra, em simultâneo, a força das limitações de uma governação minoritária, da crise económica, do aumento do desemprego, as "paixões políticas" dos agentes da nossa justiça - como ontem lhe chamou Marinho Pinto -, da demagogia dos adversários políticos (Cavaco Silva incluído) e das divisões internas no PS (já por demais evidentes nos bastidores...).
Nelson Mandela e a sua lição de hoje e de sempre
Nelson Mandela fez-se grande através de gestos pequenos, simples. Se muitos poderiam sobreviver, como ele, a 27 anos de cárcere, poucos escolheriam o perdão e a compaixão pelo opressor como condição prioritária para a vida em liberdade. Ensinou- -nos que a benevolência pode ser uma arma indestrutível quando aplicada com persistência e determinação. Se, para resistir às mais elementares tentações humanas de desistência e vingança, usou um poema que junta princípios bíblicos e ateístas num só verso, para conquistar outros para a sua causa Mandela deu o exemplo. Com actos, concretos. Fê-lo quando usou o râguebi para unir a África do Sul - o filme Invictus, de Clint Eastwood, sem ser genial, é um documento cuja importância não pode ser minimizada por erros como o de deixar um Hyundai de 2005 parado numa esquina em 1995. E voltou a fazê-lo agora, quando convidou um dos seus carcereiros - hoje seu amigo - para o jantar desta semana de comemoração dos 20 anos da sua liberdade.