Os Dias sem Sombra de Guilherme de Melo
As atitudes discriminatórias, seja qual for a modalidade apresentada, tendem fatalmente a eternizar-se, quando as respectivas vítimas avocam a sua condição como irreparável culpa, ou como bandeira desfraldada. No primeiro dos casos abre-se uma nova página do Martirológio, a prometer talvez o acesso a um altar, e no segundo resvala-se para um militantismo que, coroado embora pelos louros do herói, reduz os comuns à mera dimensão folclórica. E o perigo de anonimato, ou de ghettização, que espreita uma e outra destas reacções, rapidamente aproveitado pela vigilância do opressor, conduz a apartheids de natureza vária, e à conversão do mundo num lugar inabitável.
Guilherme de Melo, jornalista e escritor de romances, permanecerá na minha memória como exemplo da evitação de tais riscos, ao tacitamente substituir a esperada "assunção" da sua orientação sexual pela vivência da sexualidade pura e simples. O aparecimento de A Sombra dos Dias em 1981, quando a igualdade de género constituía já uma velha evidência, expressa em mudanças imparáveis, mas não a igualdade jurídica entre heterossexuais e homossexuais, significaria uma proeza de coragem cívica, e de maturidade moral. Praticamente ignorado pelos árbitros das elegâncias literárias, e até quando jurados paladinos da luta pela justiça social, e pelo destino do Homem, A Sombra dos Dias ler-se-á hoje como um testemunho da hipocrisia campeante, e como uma lição de serenidade frente à prepotência.
Durante anos e anos, ao debater-se televisivamente a questão do minoritário comportamento, lá estava Guilherme de Melo, ao tempo editorialista e redactor principal deste Diário de Notícias, agora a dar a cara sobre a índole dos seus afectos, e até sobre alguma privacidade na manifestação dos mesmos. Fazia-o com a naturalidade de um columbófilo que falasse do seu hobby, e seguramente com maior calma do que a que ampararia o professor João César das Neves, o qual, sempre que solicitado a abordar perante as câmaras o tema do produto interno bruto, acabava por derivar para o confronto com os seus estranhos fantasmas. Duvido de que uma só das intervenções de Guilherme de Melo tenha desencadeado, isto nos longínquos anos oitenta e noventa, qualquer espectacular "saída do armário", uma vez que o país persistiria em divagante delírio sobre realidades inúmeras. Mas estou certo da relevância histórica do seu contributo para o desanuviamento da nossa paisagem social, ainda que operado a longo prazo.
O romance a que nos referimos aqui guardaria aliás um extraordinário trunfo na manga, e a que seria imperdoável deixar de aludir. A vertente autobiográfica, e quase pioneira entre nós, que se exterioriza em A Sombra dos Dias pelo averbamento de todo um universo íntimo, localizado para além, e amiúde contra, a famigerada trilogia Deus-Pátria-Família, soma-se à reportagem pungente da descolonização de Moçambique, conferida em formas quase cinematográficas que convocam as épicas imagens de E Tudo o Vento Levou. Sem se crispar assim face à acusação do pecado de lesa-divindade, do crime de lesa-tribo, ou da perversão de lesa-clã, o nosso narrador procederia na sua viagem intimorata, se bem que antecipando a eventual aproximação da borrasca.
Cidadão de hábitos de frugalidade, partilhados com um companheiro que morreria cedo, mas não do mal em que se pensará, Guilherme de Melo conduziria uma existência profissional de suma dignidade, e que espelhava o restante do seu quotidiano, sem impulsos revanchistas, ou persecutórios, e sem tiques de pulsos alquebrados à rábula do Parque Mayer. Escrevia com extrema correcção, sintáctica e semântica, cavaqueava com verve e espírito de humor, e nos muitos cafés e restaurantes de Lisboa em que com ele convivi, jamais me aperceberia de que o mimoseasse o clássico "piscar de olhos dos moços de fretes", melancolicamente lembrado por Álvaro de Campos.
Quanto à frequência com que sorriam, algo divertidos, ao vê-lo ressurgir no televisor, os próprios membros da "comunidade", ou da "internacional", que Guilherme de Melo se esquecia de representar, estamos conversados. Nem isso o inquietava, consciente de que impulsos autodestrutivos se tece a alma de muitos de nós, admiradores da frontalidade do autor de A Sombra dos Dias, mas envergonhados da incapacidade de o imitar na grandeza.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.