Os dias amargos de García Márquez na Europa de Leste

<strong><em>Com pré-publicação do capítulo de Em Viagem pela Europa de Leste.</em> </strong>No final dos anos 50 o Nobel colombiano Gabriel García Márquez esteve em Berlim, Checoslováquia, Polónia, Hungria e União Soviética. Ficou desiludido, percebe-se.
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Os colombianos nunca se esqueceram do que estavam a fazer no preciso momento em que foi anunciado que Gabriel García Márquez era o escolhido pela academia sueca como Prémio Nobel da Literatura em 1982 e o escritor nunca deixou de recordar as suas viagens além da chamada Cortina de Ferro. Os motivos serão diferentes, mas iguais no poder da surpresa quando confrontado com uma experiência de vida inesquecível.

Porque foi isso que aconteceu ao escritor colombiano quando no fim da década de 50 consegue atravessar as barreiras políticas e viaja num velho carro francês de um amigo italiano - acompanhados durante algum tempo por uma amiga - pelos países que considerava estarem proibidos ao seu olhar. Não estavam, e a alarmante felicidade com que entra pela Alemanha adentro, passa para a Checoslováquia, atravessa a Polónia, conhece a Hungria e vê como lhe foi possível a União Soviética, surpreende-o. Tanto assim que não resistiu a contar a peregrinação ao mundo da Europa do Leste num conjunto de reportagens que agora surgem pela primeira vez reunidas num livro em Portugal.

Se não fossem textos assinados por Gabo, o seu diminutivo, a reportagem que depois foi publicada em várias partes passaria por um lamento de um esquerdista típico daqueles anos perante uma visão de um mundo diferente. Tão aterrador nas diferenças entre sociedades que não consegue fechar a boca para evitar certos desabafos, metendo alguns nas dos seus dois companheiros para não ser ele apenas o mau da fita. Uma situação que tem paralelo com "fãs" portugueses da URSS que evitaram escrever logo o que pensavam sobre o que viram, ou com o escritor norte-americano John Steinbeck, que com o fotógrafo Robert Capa visitara uma década antes a União Soviética, optando por a descrever de um modo literário, evitando o tom frequentemente desiludido da reportagem de Gabo.

Como o Nobel já cá não está para dar testemunho, recorre-se ao do seu amigo Plinio Mendoza, com quem volta a ir a Moscovo: "Ficou de certo modo dececionado com o comunismo. Nada funcionava e era tudo muito rudimentar... E ele nunca tinha sido grande defensor do comunismo como género de Estado."

Márquez ainda estava a anos da luz com que o romance Cem Anos de Solidão o iria iluminar, terminara Ninguém Escreve ao Coronel e o seu relativo sucesso colombiano teria sido o folhetim publicado no jornal El Espectador "Relato de um náufrago". Segundo o biógrafo do escritor, Gerald Martin, nessa época Gabo queria viajar para encontrar novos temas de reportagem jornalística: "As expectativas a cada nova reportagem que publicava cresciam e ficava exausto por causa desse esforço em inovar." Foi então que deixou Bogotá e fez uma viagem à Europa, sobre as quais referiu: "Vi muitas experiências e ganhei uma visão pessoal do mundo." Ou seja, abandonou o neorrealismo e as leituras marxistas.

A chave mestra desta nova etapa de vida acontecerá após ter estado na dividida Berlim e conseguido integrar-se numa das muitas delegações de estrangeiros que iam participar no VI Congresso da Juventude de Moscovo: "A União Soviética tinha-se preparado dois anos para receber delegados de todo o mundo [cerca de 90 mil] e essa era uma razão para pensar que em vez da realidade soviética íamos deparar com uma fabricada para estrangeiros." É interessante a forma como justifica esta preparação, convencendo--se ou esclarecendo-se: "Alguns governos ocidentais aproveitam os 15 dias do festival para infiltrar espiões com instruções precisas"; ou com o relato de uma amiga: "Para nos fazer crer que na Polónia há liberdade religiosa, abriram igrejas e puseram por todo o lado funcionários públicos disfarçados de padres." Sem esquecer a fixação nas meias de nylon, das que usam e das que lamentam não as terem nas pernas, em todas as mulheres do seu Leste.

Era o tempo do líder soviético Nikita Krustchev, profundamente envolvido na conquista espacial e a três meses de pôr em órbita o satélite Sputnik, bem como a tentar ultrapassar o consulado trágico de Estaline, e o país que vai encontrar causa um choque cultural de que resulta uma primeira reportagem [pré-publicação parcial ao lado].

Dessa narrativa vale a pena destacar um parágrafo: "É admirável a fidelidade com que a literatura e o cinema russos recriaram essa visão fugaz da vida que passa pela janela de um comboio." O que viu das janelas do comboio transiberiano e do que não lhe foi permitido observar o leitor só poderá saber ao ler estas 190 páginas kafkianas. Que se leem como um romance ao vivo, daqueles em que não falta a inspiração autobiográfica.

Em Viagem pela Europa de Leste

Gabriel García Márquez

Editora D. Quixote

192 páginas

PVP: 14,90 euro

Pré-publicação do capítulo de Em Viagem pela Europa de Leste

De Gabriel García Márquez

"Ao fim de muitas horas vagas, sufocados pelo verão e pela parcimónia de um comboio sem horários, uma criança e uma vaca viram-nos passar com o mesmo estupor, e de imediato começou a entardecer sobre uma interminável planície semeada de tabaco e girassóis. Franco - ao qual me juntara em Praga - baixou o vidro da janela e mostrou-me o brilho longínquo de uma cúpula dourada. Estávamos na União Soviética. O comboio parou. Abriu-se uma comporta na terra, de um lado da via, e um grupo de soldados com metralhadoras surgiu de entre os girassóis. Não conseguimos averiguar aonde conduzia aquela comporta. Havia alvos para a prática do tiro com figuras humanas recortadas em madeira, mas nenhuma edificação próxima. A única explicação verosímil é que ali existia um quartel subterrâneo.

Os soldados verificaram que não havia ninguém escondido nos eixos da carruagem. Dois oficiais entraram para examinar os passaportes e as credenciais do festival. Olharam-nos com uma atenção aplicada, várias vezes, até se convencerem de que nos parecíamos com os nossos retratos. É a única fronteira da Europa onde se toma essa precaução elementar.

Chop - a dois quilómetros da fronteira - é a povoação mais ocidental da União Soviética. A estação ainda estava adornada com recortes da pomba da paz, dísticos de concórdia e amizade em muitos idiomas e bandeiras de todo o mundo, embora fizesse uma semana que os últimos delegados tinham passado. Os intérpretes não estavam à nossa espera. Uma rapariga de farda azul informou-nos de que podíamos dar uma volta pela povoação, porque o comboio de Moscovo só partiria às nove da noite. No meu relógio eram seis da tarde. Depois verifiquei no relógio da estação que na realidade eram oito da noite. Eu trazia a hora de Paris e tinha de adiantar o relógio duas horas para o acertar pela hora oficial da União Soviética. Era meio-dia em Bogotá.

No salão central da estação, de ambos os lados de um portal que conduz diretamente à praça da povoação, havia duas estátuas de corpo inteiro acabadas de pintar com tinta prateada: Lenine e Estaline vestidos à civil,

numa atitude muito doméstica. Por causa do alfabeto russo pareceu-me que as letras dos anúncios estavam a cair aos bocados e isso despertou em mim uma sensação de ruína. Uma rapariga francesa estava impressionada com o aspeto de miséria das pessoas. A mim não me pareceram particularmente mal vestidas. Devia ser porque estava há mais de um mês a andar pela "cortina de ferro". A rapariga estava a experimentar a mesma reação imediata que eu sofrera na Alemanha Oriental.

No centro da praça - um jardim bem cuidado e de muitas cores em volta de uma fonte de cimento - passeavam-se alguns militares com os filhos. Nas varandas das casas de tijolo, recém-pintadas de cores alegres e primitivas, e à porta dos armazéns sem montras, as pessoas apanhavam o fresco do entardecer. Um grupo carregado de malas e sacos com coisas de comer esperava a vez do único copo diante de um carrinho de refrescos. Havia um ar rural, uma estreiteza provinciana, que me impediam de sentir a diferença de dez horas que me separava das aldeias colombianas. Era como que a verificação de que o mundo é mais redondo do que se julga e que a 15 000 quilómetros apenas de Bogotá, viajando para o Oriente, se chega outra vez às povoações de Tolima.

O comboio soviético chegou às nove em ponto. Onze minutos depois - como estava previsto - o altifalante da estação transmitiu um hino e o comboio partiu no meio de uma agitação de vozes e lenços que nos diziam adeus das varandas. São as carruagens mais confortáveis da Europa. Cada compartimento é um camarote íntimo com duas camas, um recetor de rádio de um só botão, um candeeiro e uma jarra de flores em cima da mesa de cabeceira. Há uma única classe. A má qualidade das malas, os embrulhos com trastes e víveres, a roupa e o próprio aspeto de pobreza das pessoas contrastavam de uma maneira notável com o luxo e a escrupulosa limpeza das carruagens. Os militares em viagem com as suas famílias desfizeram-se das botas e do dólman e andavam pelos corredores de camisola interior e pantufas. Mais tarde havia de verificar que os militares soviéticos têm os mesmos costumes simples, domésticos e humanos que os militares checos.

Só os comboios de França são tão pontuais como os soviéticos. No nosso compartimento encontrámos um itinerário impresso em três línguas que foi cumprido ao segundo. É possível que a organização dos caminhos de ferro tivesse sido reajustada para impressionar os delegados. Mas não é provável. Havia coisas mais essenciais que impressionaram os visitantes ocidentais e que no entanto não foram dissimuladas. Entre elas os recetores de rádio com um único botão: a Rádio Moscovo. Na União Soviética os recetores são muito baratos, mas a liberdade do ouvinte está limitada a escutar a Rádio Moscovo ou não utilizar o recetor.

É compreensível que na União Soviética os comboios não sejam senão hotéis ambulantes. A imaginação humana tem dificuldade em conceber a imensidão do seu território. A viagem de Chop a Moscovo, através dos infinitos trigais e das pobres aldeias da Ucrânia, é uma das mais curtas: quarenta horas. De Vladivostoque - na costa do Pacífico - sai à segunda-feira um comboio expresso que chega a Moscovo no domingo à noite depois de percorrer uma distância que é igual à que há entre o Equador e os pólos. Quando na península de Chukotka são cinco da manhã, no lago de Baikal, na Sibéria, é meia-noite, ao passo que em Moscovo ainda são sete da tarde do dia anterior. Estes pormenores proporcionam uma ideia aproximada desse colosso deitado que é a União Soviética, com os seus 105 idiomas, os seus 200 000 000 de habitantes, as suas incontáveis nacionalidades, das quais uma vive numa única aldeia, vinte na pequena região do Daguestão e algumas ainda não foram estabelecidas, e cuja superfície - três vezes a dos Estados Unidos - ocupa metade da Europa e um terço da Ásia e constitui em síntese um sexto do mundo. 22 400 000 quilómetros quadrados sem um único anúncio da Coca-Cola."

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