Os Diáconos Remédios

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Estava eu posto em sossego, ainda a praguejar contra o Dia Internacional da Mulher e o relambório habitual das quotas de género mais a ameaça do governo de impor às empresas do PSI 20 a obrigação de nomearem mulheres para lugares de topo, quando me sai ao caminho um pregador moralista a vociferar contra o "altar do deboche", que trava a natalidade, consequência, diz ele, da emancipação feminina. Ou seja, para João César das Neves o direito à igualdade é uma balela.

Dois dias depois tropeço noutra espécie de Diácono Remédios de apelido Saraiva - e, permitam--me a imodéstia, isto dos apelidos é como os bancos: há os bons e os maus -, a meter o nariz na vida alheia, qual alcoviteiro, porque determinada sujeita que nem conheço teve, de 2007 para cá, 15 homens. "Uff! Credo!", soltava o invejoso, retirando desta história a conclusão que é por causa de mulheres como esta que o mundo está perdido e em desconstrução.

Antes de mais nada, cumpre-me fazer uma nota prévia a qualquer outra consideração. Espero, sinceramente, que nunca falte a tribuna a César das Neves ou Saraiva. A liberdade é isto mesmo. Dizer tudo o que alma nos manda e aguentar as discordâncias e as consequências.

Devo dizer que tanto me incomodam estes discursos que revelam nas entrelinhas uma agenda contrarrevolucionária, como os movimentos histéricos do sutiã queimado. Mas, levado à letra o que diz César das Neves - "É verdade que a emancipação da mulher a masculiniza, desprezando as características femininas, no esforço obsessivo de as provar capazes em jogos de homens" -, significa tão-só que às mulheres está reservado, exclusivamente, o dever da maternidade. E, pior, sem liberdade de escolha. No mundo ideal de César das Neves, as mulheres não trabalham fora de casa que isso é para machos, não têm sequer direito a voto que é coisa de homens - heréticas sufragistas americanas, do que elas se foram lembrar no século XIX -, não saem à rua de minissaia ou, sequer, vão à praia em fato de banho porque isso é lascivo e libertino. Não, o lugar da mulher é em casa, de preferência a parir em série para resolver o problema demográfico e de sustentabilidade da Segurança Social. Não importa se tem sustento para uma maternidade responsável, como lhe chamou ainda há dias o Papa Francisco. Aliás, o mundo ideal de César das Neves é, nesta linha de pensamento, contraditório com a doutrina de sua santidade que até decretou que os católicos não devem "procriar como coelhos".

O modelo de sociedade que nos propõe César da Neves não é muito diferente daquele que o Conselho de Guardiães do Irão está a analisar, respondendo a um pedido do guia supremo, o ayatollah Ali Khamenei, para que as autoridades políticas tomem medidas para travar a quebra da natalidade. Nada melhor, portanto, que seguir a doutrina César das Neves de reduzir as mulheres ao papel de máquinas de fazer bebés. Podia ter ignorado, afinal de contas é só uma opinião, e todos temos direito a tê-la e a expressá-la. Sucede, porém, que a moral serôdia de César das Neves, herdeira do Morgado truca-truca, é um insulto à inteligência e uma ofensa à civilização do século XXI. Além de que tão perigoso é o talibã que reza virado para Meca como o fundamentalista que bate com a mão no peito de olhos postos em Roma.

E o que mais me irrita nisto tudo é que por causa de pessoas como João César das Neves ou José António Saraiva ainda vou acabar a dar o dito por não dito e a defender, com unhas e dentes, o Dia Internacional da Mulher. E isso eu não lhes perdoo.

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