Os desafios de um chef: nadar no Guincho e ver um cliente sorrir
Há uma manhã por semana que Miguel Rocha Vieira considera diferente das outras. O chef sai de casa por volta 09.30 (já depois de ter levado o filho de 3 anos à escola), passa por um viveiro no Guincho para escolher o marisco certo e leva no carro um balde para apanhar algas (o ingrediente ideal para alguns aperitivos). Depois, veste o fato de mergulho e vai nadar. "Comprei o fato para dar umas braçadas. Assim, protejo-me da água gelada do Guincho e aproveito para relaxar um pouco", conta ao DN.
Se sobrar algum tempo ainda passa pelos mercados de Cascais, vê os alimentos e fala com os produtores. Tratar da cozinha do restaurante Fortaleza do Guincho é o passo seguinte. "Como em todos os restaurantes, há sempre imprevistos diários: ou o fornecedor não trouxe o peixe encomendado ou um cozinheiro chega aborrecido porque discutiu com a namorada na noite anterior." E, claro, depois chegam os pedidos dos clientes, que merecem concentração máxima.
"Imagine que 20 ou 30 pessoas pedem o menu de degustação. Isso significa que têm de estar prontos ao mesmo tempo 210 pratos. Há dias em que são 400 ou 500", explica o chef, reconhecido mundialmente pelo trabalho nos restaurantes Costes e Costes Downtown, em Budapeste, e na Fortaleza do Guincho, em Cascais - as estrelas Michelin destes estabelecimentos são sempre atribuídas aos restaurantes e não aos chefs, embora dependam do trabalho destes. Por norma, há uma associação direta entre o profissional e o prémio.
Miguel, 37 anos, nasceu e viveu em Cascais até aos 19, quando rumou a Londres para estudar Gastronomia na escola de cozinha Le Cordon Bleu. "A minha ida para Londres foi um pretexto para sair de casa, ir viver para uma grande metrópole. Portugal vive do turismo e pensei que no dia que quisesse voltar a casa, com um canudo tirado lá fora, teria facilidade em arranjar emprego. Uma das disciplinas era Cozinha e tive essa sorte de ter encontrado aquela que é a minha vocação. Não queria tirar um curso que não me dizia nada", recorda.
O início da profissão é bastante duro. Com pouca experiência, entra-se nas cozinhas por baixo: separar ervas aromáticas ou lavar o frigorífico, por exemplo. Com o passar do tempo foi aprendendo e evoluindo como cozinheiro. "Não gostava dessas tarefas, mas tinha consciência de que era preciso passar por todos os degraus. E muitas vezes era obrigado a dar um passo atrás e mostrar outra vez o que valia", confessa.
Se trabalhar num escritório das 09.00 às 17.00 estava fora de questão, correr o mundo foi a solução encontrada por Miguel Rocha Vieira. "Depois de Londres, estive em França e em Espanha. Quando senti que estava pronto para dar o salto, tomar a chefia de uma cozinha, comecei à procura de emprego num jornal francês. Enviei vários currículos para Budapeste. Havia um projeto novo que ia abrir e precisavam de algum know how porque os donos dos restaurantes não eram do meio e precisavam dessa sensibilidade."
A mudança para a capital da Hungria deu-se em 2008, quando decidiu que era altura de aplicar tudo o que aprendera. Lutou pelo lugar com um chef francês (um fez o jantar, o outro o almoço) e ganhou o desafio. "Pensei sempre que este era o local ideal para iniciar uma carreira deste nível. Se a experiência como chef corresse mal apanhava o avião e regressava. Caso isso acontecesse num outro país [como Portugal, Espanha ou França] poderia ficar mais exposto", lembra. Ficou ali para abrir o restaurante Costes - num país desconhecido, onde se falava um idioma que não dominava e havia pouca cultura gastronómica. E nem sempre era fácil encontrar os ingredientes necessários. Durante dois anos, Miguel Rocha Vieira trabalhou sete dias por semana e a recompensa acabou por chegar pela distinção do Guia Michelin.
Cansaço extremo
Da decoração à elaboração das equipas, esteve sempre envolvido em todos os passos dos Costes. "Trabalhava 15 ou 16 horas por dia. Mas claro que é importante descansar, caso contrário também se põe em causa a criatividade", diz. Hoje, acumula o trabalho na Fortaleza do Guincho com o serviço de consultoria no Costes e Costes Downtown. Viaja para Budapeste com alguma regularidade para ajudar na elaboração dos menus e dar ideias para novos pratos.
Na altura, quando foi para a cidade húngara, enviou o currículo para restaurantes com estrela Michelin em Portugal, eram 12 ou 13, e para alguns hotéis de cinco estrelas. Não obteve respostas positivas.
O chef recorda ainda a passagem por Espanha, onde trabalhou em Sevilha no restaurante de um hotel. Só o pequeno-almoço era composto por um menu de degustação superior a 20 pratos. Entrava às oito da manhã e saía de madrugada. "Chegava a casa às três da manhã, mas não conseguia dormir porque o calor era sufocante. Aconteceu querer levantar-me da cama, não ter força nas pernas, e cair. Normalmente, nesta profissão, um dos dois dias de folga é passado a dormir. E o outro para tratar de qualquer assunto, como ir ao médico, ao banco e ver a família."
Depois de ter estado 17 anos fora do país, para estudar e trabalhar, confessa que sentiu a falta "do cheiro a mar". E, por isso, quando recebeu o convite para regressar a Cascais aceitou de imediato. "Se temos mar à frente, são coisas do mar que vamos cozinhar. Os clientes não vão encontrar aqui uma coisa que veio da América do Sul e viajou 15 horas de avião."
O regresso a casa deu-se no ano passado. "Soube através de um blogue que o chef Vincent Farges ia sair do Fortaleza do Guincho. A primeira coisa que fiz foi mandar um e-mail ao Vincent para saber se era mesmo verdade. Ele respondeu-me que sim, que era verdade, porque estava à procura de novos desafios. Depois, enviei um e-mail à diretora do hotel, expliquei que a Fortaleza era o sítio ideal para dar continuidade à minha carreira. Bastou um pequeno-almoço para ficar tudo acertado."
Na cozinha da Fortaleza do Guincho veste a jaleca (o fato de cozinheiro) e conversa com o sous-chef (a segunda pessoa mais importante na hierarquia de uma cozinha). Trocam impressões sobre o dia anterior e como está a correr o trabalho pela manhã. Trabalham ali 17 funcionários (nem todos ao mesmo tempo) em várias secções como as guarnições, carne, peixe ou marisco. "É necessário conhecer bem as pessoas com quem trabalhamos. Há pessoas que podem bloquear se levantarmos a voz por estarem a fazer alguma coisa errada", diz Miguel, recordando o dia em que ele próprio foi encostado à parede por um chef em França. "Eu disse sim chef, sim chef e continuei a trabalhar. Ninguém está nesta profissão pelo dinheiro, mas sim pela paixão."
Abrir um negócio por conta própria é um plano que continua adiado. "Estive à procura de alguns locais em Lisboa para abrir algo meu e estive também em contacto e em negociações com algumas empresas hoteleiras de norte a sul do país. A verdade é que por uma razão ou outra as coisas acabaram por não ir para a frente."
Quando se chega a este patamar a responsabilidade é enorme. Ganhar uma estrela Michelin é um prestígio, mas perdê-la é um verdadeiro pesadelo. "Ninguém quer estar associado à perda de uma estrela, mas a responsabilidade e o que eu quero - e digo isto agora porque já levo alguns anos disto - é que as pessoas que vêm aqui jantar ou almoçar saiam com um sorriso na cara."