Os construtores de Brasília

A localização foi sonho de um santo, o nome a visão de um dos pais da independência e a sua construção fruto do suor de milhares – mas se não tivessem sido três homens, Brasília não seria hoje realidade. Juscelino Kubitschek foi o presidente que num só mandato passou das promessas aos actos, Lúcio Costa o inventor da nova capital moderna que acaba de cumprir 50 anos e Oscar Niemeyer o arquitecto que transformou cada um dos seus edifícios num ícone. Três vidas que não se cruzaram apenas na poeira do planalto central brasileiro.
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A CRUZ DE FERRO sobre o altar era a mesma diante da qual se rezara, em 1500, a primeira missa em terras brasileiras. Os sinos tinham também soado em Vila Rica, 168 anos antes, anunciando a execução de Tiradentes, o herói da primeira tentativa de independência.

As trinta mil pessoas que enchiam a Praça dos Três Poderes naquela noite de 21 de Abril de 1960 sabiam que estavam diante de outro momento histórico. E quando as luzes se acenderam, ao bater da meia-noite, marcando o momento em que Brasília se tornava na nova capital, um homem chorava na primeira fila, incapaz de conter a emoção. Era o presidente Juscelino Kubitschek, sem o qual aquela realidade ainda seria um sonho onde não figurava nem o urbanismo de Lúcio Costa nem a arquitectura de Oscar Niemeyer.

A ideia de fazer uma nova capital era tão antiga como a do próprio Brasil independente, com o nome Brasília a surgir já na boca de José Bonifácio, o patriarca da independência (e ministro do imperador D. Pedro I), na Assembleia Constituinte de 1823. Pouco tempo depois, o padre italiano João Bosco, fundador dos Salesianos, sonhou com uma «terra prometida, donde correrá leite e mel», entre os paralelos 15 e 20 graus de latitude sul, e todos os olhos se viraram para o planalto central brasileiro. Brasília (cujo padroeiro viria a ser precisamente São João Bosco) continuaria contudo a ser uma miragem até meados do século XX.

«Durante o meu quinquénio, farei a mudança da sede de governo e construirei a nova capital», dise J.K., como ficou conhecido Juscelino Kubitschek, no primeiro comício da campanha para as presidenciais, a 4 de Abril de 1955. O seu slogan era «50 anos em 5» mas até os seus apoiantes duvidavam de que pudesse cumprir a promessa, após vencer as eleições com apenas 33,8 por cento dos votos. Os críticos contavam pura e simplesmente que falhasse.

J.K. nasceu em Diamantina, no Norte do estado de Minas Gerais, a 12 de Setembro de 1902. Filho de um caixeiro-viajante que morreu quando ele tinha apenas 2 anos e de uma professora descendente de alemães, cresceu numa pequena casa a poucas ruas de distância da antiga residência da filha ilustre da terra: Xica da Silva, a escrava que se tornou rainha. Na casa, hoje transformada em museu, pode ver-se como era o quarto de Juscelino, mobilado apenas com a cama, a secretária feita de caixotes e uma cadeira.

Num anexo do número 241 da Rua de São Francisco, passando o pátio onde está a árvore de jabuticaba cujos frutos encantavam o pequeno J.K., está também uma réplica do seu consultório médico. Apesar das dificuldades que tinha a família, o futuro presidente nunca deixou de estudar e acabou o curso de Medicina, em Belo Horizonte, aos 25 anos. Contudo, o seu futuro não era a urologia (especialidade que tirou na Europa), mas a política. A porta seria aberta por um companheiro que conheceu durante a Revolução Constitucionalista de 1932, quando era capitão-médico da Polícia Militar de Minas Gerais. O novo amigo era Benedito Valadares, que chamaria J.K. para ser seu secretário no governo daquele estado. O seu carisma acabaria por levá-lo ao cargo de deputado e à então capital, Rio de Janeiro.

Quando ocupava outro cargo político, o de presidente da Câmara de Belo Horizonte, em 1940, o seu caminho cruzou-se com o arquitecto Oscar Niemeyer, na altura praticamente em início de carreira. Esta já se antevia memorável e J.K. convidou-o para elaborar o projecto de um novo bairro na cidade: Pampulha. «Brasília começou na Pampulha. O que fiz em Brasília foi o encaminhamento natural da minha carreira de arquitecto, naquela fase da vida», disse Niemeyer. Foi nas margens do lago artificial que criou para o novo bairro residencial e cultural de Belo Horizonte que o arquitecto fugiu pela primeira vez da rigidez das linhas rectas e abraçou as curvas que viriam a tornar o seu trabalho reconhecível em qualquer canto do mundo. Essas curvas estão presentes na Casa do Lago, no Jardim Botânico e no grande símbolo da cidade, a Igreja de São Francisco de Assis.

O bairro da Pampulha, concluído em poucos meses, colocaria a capital mineira nas páginas das revistas de arquitectura de todo o mundo e elevaria Niemeyer ao estrelato. Quando Kubitschek voltou a querer causar impacte, sabia que havia apenas um homem a quem recorrer. Mas Niemeyer não lhe facilitou a vida: «O problema era erguer uma cidade em menos de cinco anos, então a minha parte era fazer uma arquitectura mais simples, mais fácil. Mas não fiz nada disso. Por exemplo, as colunas do Palácio da Alvorada podiam ser mais fáceis de construir, sem aquelas curvas. Mas foram elas que o mundo inteiro copiou», disse numa entrevista à revista brasileira Veja.

NIEMEYER nasceu a 15 de Dezembro de 1907, no Rio de Janeiro, e nos primeiros anos de juventude estava mais interessado na vida boémia do que na arquitectura, que só surgiu nos seus planos por necessidade. Aos 21 anos casou-se com Annita Balbo, filha de imigrantes italianos, e foi trabalhar para a tipografia do pai. Um ano depois, e como gostava de desenhar, resolveu continuar os estudos e entrou para a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). Era o início do percurso que lhe traria reconhecimento mundial, mas talvez essa fama não tivesse surgido se não fosse Lúcio Costa.

O então director da ENBA nasceu no mesmo ano que J.K., mas a milhares de quilómetros de distância. Filho de um engenheiro naval, nasceu em Toulon (França) e só aos 14 anos se mudou para o Brasil. O pai viu nele a oportunidade de concretizar o sonho de ter um filho artista e matriculou-o na Escola Nacional de Belas Artes, de onde sairia arquitecto. O seu atelier ganhou rapidamente sucesso e não é por isso de estranhar que o jovem Niemeyer tenha pedido para fazer nele o seu estágio, em 1935, dizendo até estar disposto a pagar pela oportunidade.

Nesse mesmo ano, Lúcio Costa foi convidado a elaborar o projecto para o novo edifício do Ministério da Educação e da Saúde (onde mais tarde será tomada a decisão sobre o projecto vencedor de Brasília) e convenceu o então presidente Getúlio Vargas a chamar ao Brasil o arquitecto franco-suíço Le Corbusier para dar uma série de conferências, além do seu parecer técnico. E foi o contacto com o pai da arquitectura moderna que acabou por revelar toda a genialidade de Niemeyer.

Para este, em breve viria a Pampulha e mais tarde o convite para participar na equipa de arquitectos que deveria projectar a sede das Nações Unidas, em Nova Iorque. «Confesso que não gostava do projecto de Le Corbusier», reconheceu um dia. O seu foi aprovado por unanimidade. Lúcio Costa também continua a desenhar as suas obras, mas em meados da década de 1950 foi fortemente abalado pela morte da mulher, num acidente de automóvel, quando ele próprio ia ao volante.

É ainda nesse estado de espírito que vence o concurso para o plano-piloto de Brasília, pelo qual parece nunca se ter interessado verdadeiramente. O documento que entregou ao júri a 10 de Março de 1957, o último dia do prazo, começava com um pedido de desculpas e continuava num tom de desabafo: «Não pretendia competir; na verdade, não concorro, apenas me desenvencilho de uma solução possível, que não foi procurada mas surgiu, por assim dizer, já pronta.» Esta solução surgiu-lhe durante uma viagem de barco dos EUA para o Rio de Janeiro e acabaria por arrebatar os jurados, um dos quais o próprio Niemeyer.

LÚCIO COSTA partia de uma ideia simples, a de uma cruz, para dar forma à futura capital. A topologia do terreno ditava que um dos seus eixos se arqueasse. Ao longo dele, seriam construídos os blocos residenciais. Ao cimo do eixo central, uma praça triangular albergaria os três poderes e a partir daí, ao longo de toda uma esplanada, os ministérios e outros serviços e até a catedral. Junto ao lago artificial, que seria criado com a construção de uma represa no rio Paranoá, surgiria uma zona de lazer. No papel, o desenho assemelhava-se ao de um avião. Na prática, Brasília surgiria com avenidas largas, perfeitas, para melhor apreciar a arquitectura de Niemeyer – que desenhou para este espaço mais de oitenta edifícios.

A obra não foi fácil. No meio do poeirento planalto central não havia materiais de construção (muitos chegaram de avião) e tiveram de ser rasgadas estradas que iriam ligar a futura capital ao resto do país. Do Nordeste, principalmente, chegaram milhares de trabalhadores, atraídos pelas oportunidades de trabalho. Os candangos, como ficaram conhecidos, trabalhavam oito horas por dia em três turnos, dia e noite, sob a supervisão de Israel Pinheiro (presidente da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil). Nos arredores da zona do plano-piloto nasceu um grande acampamento de operários, inicialmente com a indicação de que seria destruído após a inauguração de Brasília, mas que ninguém foi mais capaz de tirar do lugar. Hoje é a Cidade Livre.

Brasília ficou para sempre ligada ao nome de Niemeyer, que depois da capital continuou a construir um currículo invejável e continua activo ainda hoje, aos 102 anos. Depois da morte de Anita, ao fim de 76 anos de casamento, uma filha, quatro netos, 13 bisnetos e cinco trinetos, casou com a sua secretária. O nome de Lúcio Costa, o homem que inventou a cidade, ficou contudo mais esquecido, apesar das distinções internacionais que recebeu. O arquitecto morreu a 13 de Junho de 1998, no Rio de Janeiro.

Mais curta foi a vida do presidente Kubitschek, que morreu num acidente de automóvel aos 73 anos. Ele que apostara na construção de Brasília para, de certa forma, fugir também à pressão política da antiga capital, ganhou muitos inimigos – que deputado queria deixar as praias e a boa vida cariocas para se ir enterrar na poeira do planalto central? J.K. não conseguiu eleger o seu candidato nas presidenciais de 1960, sendo um ano mais tarde eleito senador por Goiás. Após o golpe militar, perdeu os seus direitos políticos e exilou-se (passou mais de um ano em Portugal), regressando ao Brasil só em 1967 e acabando por viver depois a maior parte do tempo na sua fazenda em Goiás.

Para a história ficam as suas palavras na primeira vez que pisou, a 2 de Outubro de 1956, o local vazio onde nasceria Brasília: «Deste planalto central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino.»

Cerejeira enviado do Papa
Reza a história que foi mais fácil perceber a mensagem do Papa João XXIII, transmitida em directo desde o Vaticano através da rádio, do que entender as palavras do seu enviado especial à inauguração de Brasília: o cardeal português Manuel Gonçalves Cerejeira, patriarca de Lisboa, que falava com um sotaque demasiado cerrado para os brasileiros. O discurso do Papa, que se esforçou por falar em português, foi mais acessível. Na sua viagem para Brasília, o cardeal Cerejeira levou na bagagem a cruz de ferro usada na primeira missa em terras de Vera Cruz – e também na nova capital –, que faz parte da colecção do Museu da Sé de Braga.

A capital da corrupção
O dinheiro gasto na construção de Brasília não foi apenas para os materiais de construção ou os salários dos trabalhadores: serviu também para enriquecer muita gente. E a utopia de ter uma cidade nova, sem desigualdades sociais, caiu logo após a inauguração. Nas suas memórias, o ex-presidente Juscelino Kubitschek escreveu: «Agora tudo mudou e sentimos que a vaidade e o egoísmo estão aqui presentes e que nós mesmos estamos voltando, pouco a pouco, aos hábitos e preconceitos da burguesia que tanto detestamos.»

A corrupção sempre fez parte de Brasília, e não é preciso recuar muito no tempo: o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, ou os escândalos do «mensalão» do Partido dos Trabalhadores do actual presidente Lula da Silva, já no século XXI. E nem no ano de celebração dos 50 anos Brasília conseguiu escapar: o governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, foi preso como suspeito de receber subornos – há vídeos que parecem prová-lo. O novo governador, Rogério Rosso, foi eleito há uma semana por voto indirecto e tomou posse na última segunda-feira, devendo ficar no cargo até ao fim do ano.

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