Em 1929, durante o pânico inicial do que seria a "grande depressão", um repórter perguntou a John Maynard Keynes, o grande economista britânico se alguma coisa semelhante alguma vez tinha acontecido. Keynes respondeu: "Sim, chamou-se Idade das Trevas e durou 400 anos." Em momentos parecidos de alarme (e este, embora menos visível, tem semelhanças em alguns sectores) é sempre bom lembrar esta piada (porque, é preciso dizer, trata-se de uma piada)..A frase tem vários sentidos. O primeiro, e constitui a parte séria, é que o ser humano em geral, e o sistema financeiro em particular, vivem pendurados sobre um abismo. No tempo de Keynes, ambos, com a Grande Depressão e sobretudo a Segunda Guerra Mundial, caíram nesse abismo..O segundo sentido é que, por pior que pareçam as circunstâncias, houve sempre na história coisas muito piores do que enfrentamos. A actual crise financeira é grave, muito mais grave do que a maior parte dos transeuntes julga. É capaz de vir a ser a pior crise desde o crash de 1929. Mas será certamente muito menos grave que a Grande Depressão..Há ainda um terceiro sentido que merece referência, a infeliz recorrência das tolices. Olhando a actual derrocada, que começou com o subprime hipotecário americano, ficamos espantados como pessoas inteligentes, informadas, especialistas, caem em erros tão infantis e evidentes. A única explicação é a que o mesmo Keynes deu noutra passagem, quando falou dos animal spirits que se apoderam dos investidores em momentos de euforia..À medida que se vai aprofundando a intermediação financeira, cada vez os montantes e a exposição aumentam mais. Mas, mais surpreendente, diminui o período de tempo entre explosões das bolhas. Aqueles que estão a perder a camisa em 2007 e 2008 estiveram à beira do abismo em 2000, com a crise das novas tecnologias. Os erros hoje cometidos são iguais aos de então, em maior dimensão..Esta constatação lembra que a complacência dos investidores provém, em boa medida, das melhorias conseguidas desde a Grande Depressão (e a Idade das Trevas...)..Uma das principais causas da inacreditável imprudência que agora se revela aconteceu por ter sido muito ligeira a punição dos erros cometidos há oito anos. Isto é verdade a vários níveis..Nos EUA, a ressaca das loucuras bolsistas das tecnologias foi amenizada pelo banco central. A Fed injectou liquidez, evitando que muitas instituições creditícias sofressem a competente falência. Essas e outras, com as costas quentes pelas autoridades, foram meter-se agora em sarilhos maiores. Em Portugal o buraco financeiro de Guterres foi salvo pelo euro. Na moeda única fomos poupados à dureza de ajustamento dos dois acordos com o FMI, em 1977 e 1983. Com as costas quentes, estamos há sete anos em modorra, empatados por falta de coragem para resolver o desequilíbrio financeiro nacional..As intervenções dos bancos centrais, a Fed nas aventuras do subprime e o BCE nas tolices de Portugal, parecem justificáveis. Afinal, a sua função é reduzir o risco e manter a solidez do sistema. Mas existe uma distinção subtil, mas crucial, entre dois tipos de risco..O primeiro é aquele que nasce de uma concessão de crédito disparatada ou, pior, corrupta, como nas emissões de novas tecnologias e na euforia guterrista. Esse risco não deve ser assegurado pelo banco central e só tem uma solução: que o devedor pague ou que quem concedeu o dito crédito perca a proverbial camisa..O segundo risco é o risco sistémico. Todo o mercado creditício está fundado na mais movediça das substâncias do universo, a confiança. Qualquer operação bancária ou bolsista, numa palavra "fiduciária", baseia-se na fidúcia mútua entre os intervenientes. Essa confiança evapora-se subitamente em momentos de pânico, colocando em igualdade de circunstâncias o emprestador tonto e o credor ponderado..Esse é o abismo. Porque, como também disse Keynes, "se deves cem libras ao banco, tens um problema; se deves um milhão de libras ao banco, o banco tem um problema". |