Os ananases estão de volta ao Palácio de Queluz

A reabilitação do Jardim Botânico está pronta e nas estufas começa a florir a mais exótica das frutas do século XVIII. E os 22 canteiros preparam-se para a Primavera
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Mesmo num dia de inverno especialmente soalheiro, é notória a diferença de temperatura em relação ao exterior dentro da estufa branca recuperada no jardim botânico do Palácio de Queluz. Está um calor dos ananases, e a expressão é literal. Estão quase 40 graus e, lá dentro, o canteiro está cheio de coroas de ananás. A fruta mais exótica do final do século XVIII volta a crescer na antiga residência da família real portuguesa.

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Foi aqui, diz a documentação histórica, que se cultivaram os primeiros exemplares deste fruto em Portugal, ainda no reinado de D. Pedro III, aquele que tornou esta casa de verão um palácio. Está escrito, por exemplo, que "quando os ananases estavam maduros deviam ser levados aos senhores", nota Nuno Oliveira, diretor técnico para o Património Natural da Parques de Sintra, que gere este monumento nacional. Os "senhores", note-se, eram os reis.

Os ananases, de resto, "aparecem na iconografia do palácio", diz Nuno Oliveira. Na época, "era quase como um troféu", sublinha ao DN o engenheiro florestal. O ananás era de tal forma apreciado que existe um edifício na Escócia, Dunmore Park, com a sua forma.

Aquecidas a água quente, tornaram mais simples o cultivo deste fruto oriundo da América do Sul, que gosta de ambientes quentes e húmidos. Por isso, não se espante quem entrar aqui e vir pratos com água. Servem "para criar condensação", explica Nuno Oliveira. É assim que esse clima será conseguido aqui. A temperatura é gerada pela casca de carvalho que serve de cama aos ananases e liberta o calor.

O cultivo dos ananases é uma consequência da reabilitação do jardim botânico, uma obra que demorou pouco mais de um ano e um investimento de 600 mil euros, segundo Nuno Oliveira, diretor técnico para o património natural da Parques de Sintra, a entidade que gere, desde 2012, o Palácio Nacional de Queluz.

O trabalho de restauro arquitetónico está pronto e nas quatro estufas, de ferro e vidro, cujo topo se pode ver desde o IC19, vão crescer os tais ananases, em várias fases do desenvolvimento.

Nos outros canteiros, 22, serão plantadas espécies de 22 classes definidas pelo médico e botânico sueco Carlos Lineu (ficam de fora duas, correspondentes a criptogâmicas, as plantas em que se desconhecia a forma de reprodução). A época das sementeiras "começa agora", diz Nuno, e, para já, as plantas, algumas em vasos, outras em semente, estão guardadas. Na primavera, o tempo certo, começam a florir e, já identificadas, tudo estará pronto para que os visitantes do palácio circulem por estes caminhos. "Cada espécie vai estar identificada com o seu nome em latim", explica Nuno Oliveira, assente a historiadora Denise Pereira da Silva, cuja investigação do Palácio de Queluz serviu de base a esta reabilitação.

Por enquanto, vasos e vasinhos de plantas estão numa casinha de chá no jardim, uma das muitas "atrações" que existiam por aqui enquanto a residência serviu para o lazer e recreio da família real. A historiadora Denise Pereira da Silva lembra um moinho holandês e uma barraca rica, em talha.

No próprio jardim botânico existia uma casa chinesa, descrita na cartografia do palácio, mas que ficou de fora nesta recuperação. "Foi uma opção não consensual", admitem o engenheiro florestal e a historiadora. "Ponderámos fazer a representação de um pavilhão chinês, mas não tínhamos bases para recriá-lo", acrescenta o responsável pelo património natural. "Garantidamente, se aparecer há aqui espaço para ela", promete. Fica no topo do botânico, entre duas estufas.

Outra opção de conservação nesta intervenção foi manter duas épocas em diálogo. Se o botânico é da segunda metade do século XVIII, os alegretes ao seu redor são bem mais recentes. Datam do século XIX. "Terão misturas de flores anuais, adequadas à época", afirma Nuno Oliveira. Cravinas, girassóis, calêndulas, narcisos... Flores, em suma, que "não comprometem a estrutura que as conserva". Isto é, as floreiras.

"Desde a criação do jardim botânico, por D. Pedro III, até à partida da família real para o Brasil [em novembro de 1807] e à ausência desta gestão de proximidade", o espaço sofreu vicissitudes várias, começando nas cheias, useiras e vezeiras neste local, confluência de duas ribeiras, do Jamor e de Carenque, em 1953, 1957, 1976 e 1983, explica Nuno Oliveira, resumindo a história do jardim botânico. Convertido em picadeiro para a Escola Equestre Portuguesa, os espetáculos também acabariam por sair daqui devido ao ruído do IC19, ali mesmo ao lado.

Cheias e poluição sonora são problemas que continuam a estar sobre a mesa. Para os resolver está aberto até 30 de março um concurso público de soluções criativas para criar "uma ponte verde e uma barreira sonora, com vegetação e recurso a modelação do terreno", segundo Nuno Oliveira.

Em 2012, começou o processo ativo para reerguer o jardim botânico. Não com máquinas e não aqui, mas no gabinete da historiadora Denise Pereira da Silva, a partir do índex do médico e botânico Morais Soares. Esse índex foi transcrito no jornal de agricultura do século XIX, explica. "É o que nos serve de base à reconstituição do jardim."

Beatriz Duarte, arquiteta paisagista da Parques de Sintra, entra na conversa. A identificação das espécies descritas por Lineu é o seu trabalho neste projeto. Quase 200, diferentes, vão ser plantadas. "O nome das plantas em latim diz muito", adverte Nuno Oliveira, mas o jardim botânico de Queluz exigiu contactos com congéneres internacionais. "Rússia, Alemanha, França, Itália, Malta, Bélgica", elenca, de memória, Beatriz Duarte. "Existe uma rede chamada Botanical Garden Conservation, com um banco de sementes para troca", explica a especialista, a caminho do reabilitado jardim botânico. Nem tudo está disponível em hortos comerciais.

Fundamental para que o projeto avançasse foi reunir todas as pedras que dele faziam parte e que até estavam espalhadas pelos jardins de Queluz, um espaço com uma área total projetada de 16 hectares. "Sem se saber que eram do jardim botânico", nota Nuno Oliveira. Ao seu lado cresceu "um estaleiro colossal de pedras", nas palavras de Nuno Oliveira. Uma vez reunidas, as equipas fizeram uma autêntica montagem de puzzle, reconstituindo o lago central, os canteiros das estufas e os elementos da balaustrada. No arranque dos trabalhos, em inícios de 2016, estavam já identificadas as fundações das estufas.

Uma equipa de nove jardineiros trabalha na Parques de Sintra, mais de metade ocupa-se destes espaços, além de um grupo de pessoas com deficiência que trabalham aqui "cinco dias por semana". "São determinantes para a boa manutenção do jardim."

O plano é que os 200 ananases adquiridos para esta primeira cultura seja "fonte de propagação". "Sem coroa, ele pega", explica Nuno Oliveira. "Quando estiver maduro, o jardineiro recolhe e prepara a propagação."

Tratando-se de um espaço vivo, aberto ao visitante que visite o palácio, estará mais exposto a estragos: "Essas coisas acontecem e vemos com naturalidade", afirma Nuno Oliveira. "Aprendemos a conviver com isso, mas tentamos educar para que não aconteça."

Espaço de recreio, mas também de educação, com o jardim botânico será criado "serviço educativo específico". "É o sítio ideal para transmitir conhecimento sobre biologia e botânica", remata Nuno Oliveira. Falta um mês para a primavera.

(Corrigida no dia 28-02-2017, às 12.35: Nuno Oliveira é engenheiro florestal; Serão plantados 22 das 24 classes de Lineu, ficando de fora as criptogâmicas)

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