Três meses depois do início dos protestos na Nicarágua, quando o balanço de mortos já vai em 280 e o de feridos em 1830, cresce a pressão internacional para que o presidente Daniel Ortega, de 72 anos, ponha um ponto final na repressão das manifestações e na violência e empreenda um diálogo que permita uma "solução política" para a crise..Mas Ortega parece ignorar a pressão. Entre 1500 e duas mil pessoas armadas, entre militares, políticas e forças leais ao presidente, atacaram esta terça-feira a localidade de Masaya, um dos epicentros dos protestos, a 35 km de Manágua. E assumiram o controlo da localidade, destruindo as barricadas que os manifestantes tinham erguido.."Atacam Monimbó! [bairro de Masaya] As balas estão a chegar à paróquia Maria Madalena, onde está refugiados o sacerdote. Que Daniel Ortega pare o massacre", escreveu o bispo auxiliar de Manágua, Silvio José Báez, no Twitter..Críticas internacionais."O uso da força letal não só é inaceitável, mas é em si mesmo um obstáculo para alcançar uma solução política para a atual crise", disse o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, no início da semana. "É uma responsabilidade primária dos Estados proteger os seus cidadãos. O número de mortos é totalmente inaceitável", acrescentou, durante uma visita à Costa Rica, no qual recebeu uma carta de sete ex-presidentes que avisam para o risco de "guerra civil" no país vizinho..O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos fala em "operações de limpeza", com "execuções extrajudiciárias, casos de tortura e detenções arbitrárias" por parte do Estado e grupos leais armados..Por seu lado, a chefe da diplomacia europeia, Federica Mogherini, instou o governo da Nicarágua a pôr "fim imediato" à violência, repressão e detenções arbitrárias no país, e a respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos. "Só um diálogo alargado sobre justiça e democracia permitirá uma solução pacífica para a crise na Nicarágua, que responda às legítimas preocupações da população", defendeu..Doze países da América Latina, incluindo Argentina, Brasil e México, exigem o "fim imediato da violência" e " celebração de eleições livres, justas e oportunas, num ambiente livre de medo, intimidação, ameaças ou violência"..Três meses de protestos.O descontentamento começou com a aprovação na Assembleia Nacional dominada pelos sandistas de Ortega, a 16 de abril, de uma reforma da segurança social, para fazer face a um défice superior a 75 milhões de dólares e garantir a sustentabilidade financeira do Instituto Nacional de Segurança Social..A idade de reforma mantinha-se nos 60 anos (apesar de o Fundo Monetário Internacional ter defendido que subisse para 65), mas decretava-se uma diminuição de 5% nas pensões e aumentava-se os pagamentos - as empresas de 19 para 22,5% e os trabalhadores de 6,25 para 7%..A 18 de abril, dois dias depois de ter sido aprovada a reforma (criticada pelo setor empresarial), os manifestantes saíram à rua de várias cidades do país..Os protestos acabaram em confrontos entre os manifestantes e as forças governamentais, com o registo das três primeiras vítimas mortais - atualmente já são, segundo as organizações de defesa de direitos humanos, mais de 280, havendo grupos locais que falam em mais de 350..A 22 de abril, sob pressão dos protestos contínuos que já tinham feito 25 mortos (um deles um jornalista que estava em direto no Facebook), Ortega anunciou que a reforma da segurança social ficava sem efeito, esperando acalmar a situação..Mas o que começou como um protesto contra a reforma, transformou-se numa crítica aberta a Ortega e ao regime que muitos consideram autocrático..Da guerrilha ao poder.Ex-líder da guerrilha que empreendeu a revolução sandinista e derrubou a ditadura de Somoza a 19 de julho de 1979, Ortega ficaria no poder até 1990. Após um acordo de paz que acabou com a guerra civil, que opunha os sandinistas aos Contras (paramilitares apoiados pelos EUA), realizaram-se eleições livres e Ortega foi derrotado por Violeta Chamorro..Depois de décadas na oposição, voltaria contudo ao poder em 2007, após uma vitória eleitoral. Desde então, ganhou mais duas vezes, em 2011 e em 2016, após ser aprovada uma emenda constitucional que permite a reeleição ilimitada. A sua mulher, Rosario Murillo, foi eleita vice-presidente nas últimas eleições.."Se a atual repressão dos protestos contra o seu governo de 11 anos fossem um filme, diríamos que era um remake da campanha brutal que Somoza travou contra os seus adversários políticos na década de 1970", escreveu o editorialista Charles Lane, no The Washington Post, intitulada "Ortega está a tornar-se no tipo de autocrata que outrora desprezou"..Muitos continuam contudo a defender Ortega, que na véspera do 39.º aniversário da vitória sobre os Somoza parece ter aumentado ainda mais a repressão..Diálogo nacional.Numa tentativa de acalmar a situação, quando muitos pediam a demissão de Ortega e o número de mortos não parava de crescer, a Igreja Católica aceitou a 24 de abril servir de mediadora no diálogo nacional. 175 manifestantes, que tinham sido detidos, foram libertados..O diálogo nacional começou oficialmente a 16 de maio, quando Ortega e Murillo se encontraram com bispos católicos e a Aliança Civil, composta por membros da sociedade civil, estudantes, agricultores e empresários, para discutir a democratização da Nicarágua. Mas foi suspenso uma semana depois, a 23 de maio, por falta de consenso, com Ortega a dizer que a proposta de eleições antecipadas é "um caminho para um golpe de Estado"..A 30 de maio, Dia da Mãe, 50 mil pessoas protestaram em Manágua e as tropas sandinistas usam balas reais contra a multidão, matando 11 pessoas..A 7 de junho, os bispos voltaram a fazer nova tentativa de diálogo com Ortega, propondo a realização de eleições antecipadas que seriam garantidas por um novo Supremo Tribunal Eleitoral, assim como a eliminação da reeleição. Apesar de ter prometido responder em 48 horas, o presidente não o fez..A 14 de junho, foi convocada uma greve nacional para pressionar Ortega. Nessa altura já se estimava que a crise tivesse custado 800 milhões de dólares ao país. Um dia depois, a 15 de junho, foi retomado o diálogo nacional, com Ortega a convidar representantes de várias organizações internacionais, incluindo as Nações Unidas e a União Europeia. Mas a igreja disse que nunca viu provas desses convites e a 19 de junho voltou a suspender o diálogo..Nas ruas, continuavam os protestos. A 5 de julho, quando o número de mortos já ia nos 220, os EUA anunciaram sanções contra três responsáveis da Nicarágua, incluindo o comissário da polícia, Francisco Javier Díaz..O dia mais sangrento.A 8 de julho, as forças governamentais e paramilitares entraram em confronto com manifestantes que, em várias cidades do sul da Nicarágua, faziam bloqueios de estradas. Pelo menos 31 manifestantes morreram, além de sete polícias e membros das forças pró-governamentais..A 9 de julho, forças paramilitares tentaram entrar na basílica de Diriamba, onde o arcebispo de Manágua, Leopoldo Brenes, e o bispo auxiliar Silvio José Báez, tentavam ajudar um grupo de manifestantes. Báez revelou no Twitter as agressões de que foi alvo e a conferência episcopal voltou a suspender o diálogo..Entre 12 e 14 de julho, nova marcha de protesto, intitulada "Juntos somos um vulcão", exigindo a saída de Ortega e justiça para as vítimas. No dia 13, houve nova greve nacional e as forças pró-governamentais atacaram 200 estudantes que ocupavam a Universidade Nacional Autónoma da Nicarágua, com os alunos a fugirem para uma igreja, onde estiveram debaixo de fogo durante 15 horas, transmitindo em direto através das redes sociais..E não há um fim à vista. Ontem, a Assembleia Nacional aprovou uma lei sobre terrorismo que pune com uma pena de 15 a 20 anos de prisão quem danifique ou destrua bens públicos ou privados, medida que surge em plena crise e que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos denuncia possibilitar a criminalização de protestos pacíficos.