Orquestra XXI e Artur Pizarro: Tirar as pessoas do seu mundo

A orquestra que reúne 55 jovens músicos a viver no estrangeiro, apresenta-se pela primeira vez com um pianista solista. O DN acompanhou o primeiro ensaio conjunto na Casa da Música
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Durante boa parte do primeiro ensaio, a Orquestra XXI parecia ter dois maestros: o seu titular e fundador, Dinis Sousa, e o pianista Artur Pizarro. Começavam a trabalhar em conjunto a peça de Brahms e a música não tinha o sentimento no lugar certo. Pizarro, calções de xadrez e T-shirt, interrompia o ensaio e dirigia-se aos jovens músicos. Pedia desculpa ao maestro, esbracejava, dizia em palavras aquilo a que os instrumentos deviam soar: "É um bocadinho como as hospedeiras da TAP, que quando querem ser levadas a sério põem trombas."

Risos. Pizarro já tinha dito que aquele amor do primeiro andamento do Concerto para Piano e Orquestra n. º1, op.15 de Brahms não era "um amor de verão", como lhe estava a soar. Era um amor frio. "Menos coração, é uma paixão sofrida." Os risos dissipam-se ligeiros e dão lugar aos corpos em sentido moldados ao preceito que cada instrumento pede. As cordas, os metais, os sopros entram no preciso tempo que o maestro Dinis marca com a batuta. Estávamos no piso -2 da Casa da Música, numa sala de ensaios salpicada de pacotes de bolachas, garrafas de água, chapéus de chuva - o outono pressente-se. Os ensaios da orquestra que junta 55 jovens músicos portugueses já decorriam há alguns dias. Na terça-feira à tarde chegou o solista convidado.

O maestro Dinis Sousa fez uma breve apresentação e de imediato começou o ensaio. "O Pizarro viveu muito tempo fora de Portugal, parece natural trabalhar com ele porque ele é um de nós." A Orquestra XXI foi criada por Dinis Sousa em 2013. Junta os músicos portugueses que vivem no estrangeiro. "Imagino que uma boa parte dos músicos que estão fora de Portugal já passaram pelo projeto. Foram quase 200 ao longo de quatro anos", diz. Um desafio para o maestro, uma vez que a formação é sempre diferente, apesar de haver um grupo que se tem mantido fixo. Em 2013 foi um projeto vencedor do FAZ - Ideias de Origem Portuguesa e continuam a trilhar o caminho. "Sinto que partimos de um ponto que é diferente do de há quatro anos. Há essa ligação pré-ensaio", diz-nos ainda na cafetaria numa pausa que coincidiu com a afinação do Steinway onde Pizarro iria, pouco tempo depois, dedilhar magia.

O maestro de 29 anos vive em Londres, onde é assistente do maestro Sir John Elliot Gardiner. "Trabalho com ele nas produções que faz. Ainda agora estive nos Proms a fazer a Danação de Fausto." Também tem projetos por conta própria e mantém o trio que formou quando ainda estudava e no qual toca piano.

A Orquestra XXI está cheia de histórias. Tantas quantos os jovens que se misturam na esplanada da Casa da Música e que, não tarda, se sentariam nas cadeiras da sala de ensaio. Mais ou menos a meio está Adriana Ferreira. Tem 26 anos, é natural de Cabeceiras de Basto e é flautista solista da Orquestra Nacional de França desde 2012. "Estudei na Escola Profissional Artística do Vale do Ave, em Santo Tirso, até concluir o 12.º ano de escolaridade. Depois estudei em Paris no Conservatório Superior de Música, onde fiz o primeiro, segundo e terceiro ciclos superiores. Também estudei na Sorbonne, musicologia."

Adriana diz que é flautista "por acaso". Quando entrou na escola pediu aos pais para lhe arranjarem um professor de música e os pais trouxeram-lhe um professor de piano. "Mais tarde, aos 8, lembro--me de ver a banda filarmónica da minha terra a desfilar e pedi aos meus pais para me inscreveram. Quando fui para lá faltava-lhes um flautista. Como eu era muito pequenina, compraram-me um flautim e um livro, que não havia professor. Depois aos 10 os meus pais compraram-me uma flauta e aos 12 mudei-me para Santo Tirso para estudar mesmo a sério."

Também o acaso pôs Carlos Ferreira onde está hoje, em Monte Carlo. Pelo menos é o que ele diz. "Estava no sítio certo na hora certa e tudo o que eu sonhei foi-se concretizando." Acreditamos só de ver os olhos brilhantes enquanto desfia a carreira que começou nos bastidores dos espetáculos da filarmónica da aldeia e está agora na Orquestra Filarmónica de Monte Carlo. Tem 23 anos e é natural de Duas Igrejas, Paredes. "Eu comecei quando tinha 6 anos. Tenho na família dois irmãos que andavam numa banda filarmónica, são músicos amadores. Quando era pequenino, os meus pais iam onde a banda estivesse e eu sempre com eles. O maestro deixava-me subir para a parte de trás dos coretos e eu sempre tive esse entusiasmo. Quando tinha 5 anos, prestes a entrar na escola primária, comecei a ir às aulas de solfejo na banda e passado uns meses escolhi um instrumento, foi o clarinete." Até hoje. Lá está ele na última fila durante o ensaio com Artur Pizarro, que a dado momento lhe pede um ajuste - tal como fez a vários músicos. "Cada solista tem a sua interpretação. Ele chegou e trouxe uma nova maneira de ver o concerto que resultou verdadeiramente. A orquestra foi fenomenal. Conseguimos atingir as ideias dele", diz.

Mais sobre a direita da formação está Rui Pedro, contrabaixista. Tem 21 anos e entra na Orquestra XXI depois de a ter acompanhado como estagiário há quatro anos, quando ainda estudava na Escola de Música de Espinho. Depois disso, foi para Berlim e atualmente trabalha na Orquestra Festival de Budapeste e é academista da rádio de Berlim. Estar na orquestra como estagiário e como integrante é totalmente diferente mas as duas experiências foram muito importantes na sua formação: "No estágio é para podermos aprender e partilhar essa experiência com colegas mais velhos que nos possam orientar durante uma tarde. A duração do estágio é curta. Integrar a orquestra é diferente, estamos a ensaiar há vários dias, trocamos muitas experiências."

Dinis Sousa diz que os estágios que a orquestra promove são "mesmo importantes". Os jovens alunos do ensino profissional são selecionados e passam um dia com os músicos profissionais. "De facto, fazemos muita diferença nos percursos deles. Ontem estava a falar com um dos músicos que fez um dos grandes papéis de solo que me disse que foi a primeira sinfonia que ele pôde tocar completa... Para eles marca-os muito. Deixou-me muito emocionado perceber que três dos nossos integrantes agora fizeram isto há quatro anos."

Voltemos à sala onde os 55 músicos procuram harmonias. O ensaio prossegue aos soluços. A orquestra avança e para, avança e para. Pizarro salta da banqueta para o púlpito, espreita as notas de Dinis, pede desculpa, já não pede desculpa, volta ao teclado. "I"m unyielding" , diz ao maestro. Dinis, absorto na pauta, diz não perceber a interjeição. "É não dar passagem no trânsito", diz-lhe o pianista. "Desculpa, não conduzo." Gargalhada geral com Pizarro a rematar: "O conductor não conduz, já viram a ironia?"

Foi perto de hora e meia de afinação. De encaixar as peças do puzzle. De encontrar o tom certo. Até que Pizarro toca o seu solo fechando os olhos sorridente, bebendo a orquestra. "Perfeito!" O ensaio termina, o pianista arruma a pauta digital, satisfeito. Ele, que antes do ensaio se dizia curioso por conhecer a orquestra por dentro, estava rendido. "Para primeiro ensaio correu muitíssimo bem." No dia seguinte voltariam a juntar-se. "Temos sempre de ter alguma na manga para deixar as pessoas de queixo pendurado", diz ao DN. "Temos de tirar as pessoas de dentro do seu mundo, levá-las para outro mundo. Não vamos fazer sempre igual, rotinas temos nós todos os dias, muito obrigado." Já no andar de cima, os dois maestros trocam impressões, Pizarro volta a pedir desculpa a Dinis pela intromissão, este sorri tranquilo e visivelmente satisfeito. "Vamos deixá-los de queixo pendurado", repete Pizarro.

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