Orlando Raimundo: "Américo Thomaz era um cobarde"

O retrato biográfico de O Último Salazarista - A Outra Face de Américo Thomaz, do jornalista e investigador Orlando Raimundo, não é simpático para com o almirante. É inédito e esclarecedor da figura.
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A sobrevivência do último Presidente do Estado Novo esteve por um fio durante o parto, mas mãe e filho superaram o momento por "milagre". É o que conta Orlando Raimundo neste retrato biográfico - O Último Salazarista - de Américo de Deus Thomaz; de Deus por batismo devido ao que a família em peso considerou ser uma ajuda divina. A sorte continuou e a rainha D. Amélia pagou-lhe os estudos. Passo a passo, o jovem Américo vai progredindo na vida e, seguindo o conselho do pai, ingressa na vida militar, não sem ser recusado pelos médicos por ser franzino. Alimenta-se melhor e faz exercício, estuda como um "marrão", sendo admitido na Escola Naval. Uma carreira durante a qual foge tenazmente a qualquer entrada em combate, tendo optado por fazer o levantamento hidrográfico da costa portuguesa. Após vários atos de cobardia, que são enumerados pelo autor, Thomaz cai nas graças de Salazar, nem que seja com algum teatro em que representa o papel de humilde servidor. Progride em cargos bem remunerados, até chegar a Presidente da República. Mandato que cumprirá com grande desenvoltura a fazer inaugurações durante o tempo do ditador.

O Último Salazarista. Acabaram os salazaristas em 2017?

Não. Os "órfãos" do ditador que ainda sobrevivem, já todos fora de prazo, foram integrados na ordem social estabelecida pela Constituição política de 1976, como aconteceu com o ex-ministro José Hermano Saraiva, tornado estrela de televisão. São totalmente inofensivos. O que existe, e requer alguma atenção, são adeptos das novas formas de populismo, como Jaime Nogueira Pinto, que tentam abrir caminho à criação de uma formação política neosalazarista, atualizada ao estilo da Frente Nacional de Marine Le Pen. Não creio que venham a ter sucesso.

Tomás era conhecido por "corta-fitas". Manteve a opinião após este trabalho?

O povo costuma ajustar contas com os seus inimigos mais poderosos rindo-se à socapa. É verdade que o homem andava sempre de tesoura em punho, mas reduzi-lo à condição de corta-fitas é uma forma naïf de o não levar a sério.

Porque diz isso?

Porque há características de personalidade em Thomaz que não dão vontade de rir, como é o caso da comprovada falta de coragem, várias vezes demonstrada. A investigação conduz à conclusão de que Américo Thomaz era um cobarde, o que sendo grave na figura de um chefe de Estado o é ainda mais quando esse cargo corresponde à chefia suprema das Forças Armadas. A circunstância de um adepto da monarquia se ter tornado Presidente é sintomática dos improvisos do salazarismo.

Afirma que Thomaz condicionou muito mais a história do que se pensa. Pode dar um exemplo?

A continuação da Guerra Colonial, que conduziu à queda do regime, é o mais eloquente de todos os exemplos. Ao vincular Marcelo Caetano ao compromisso secreto de não abrir mão do império colonial, tal como o tinha herdado de Salazar, atou-o de pés e mãos.

A que se deve esta ignorância continuada no pós-25 de Abril sobre um governante que passou despercebido durante tanto tempo em Belém?

A história precisa de tempo e talvez este seja o momento certo, pois passados 43 anos sobre o 25 de Abril ganhámos distanciamento necessário a um juízo independente, sem emoção. Hoje já não queremos pôr ninguém no banco dos réus, apenas apurar com rigor o que se passou. É assim que se faz a história.

Já escreveu sobre Caetano. Após este livro pode dizer-se de vez que o Presidente do Conselho foi travado na sua abertura política por Thomaz?

Com toda a segurança. O exemplo da Guerra Colonial é crucial. Não tenhamos, contudo, ilusões: Marcelo Caetano nunca teria tido sucesso, mesmo que tivesse conseguido adotar uma saída de tipo federalista para as colónias, porque sendo um inimigo feroz da democracia seria inevitavelmente engolido pela história. A ideia, posta a circular por setores académicos de direita, de que com ele poderia ter havido transição é uma grande mentira, com ou sem colónias. Caetano era um ditador, que exerceu o poder autoritário apoiado na censura e na repressão da polícia política. Não sejamos ingénuos.

A recondução de Thomaz na Presidência por grande maioria em 1972 só teve como resposta efetiva uma largada de dois porcos vestidos de almirante, que tiveram tanta importância como o rebentamento de algumas bombas na sua tomada de posse. É sempre o ridículo que o retrata?

Thomaz foi reconduzido por grande maioria e até poderia tê-lo sido por unanimidade, uma vez que foi votado por um colégio eleitoral constituído exclusivamente por gente da confiança do regime. Salazar tinha acabado com o voto universal direto, para não se repetir o caso Delgado. O lançamento dos porcos fardados de almirante foi uma iniciativa das Brigadas Revolucionárias, apostadas em destruir a figura pelo ridículo - que é uma das formas mais eficazes. Muito mais sério foi o caso das bombas da ARA, o braço armado do PCP, que deitaram abaixo postes de alta tensão em vários pontos do país.

Thomaz regressou impune a Portugal em 1978. Enquanto autor, parece crítico desses brandos costumes. É assim?

A democracia foi de facto branda de mais, não apenas com Thomaz mas, sobretudo, com os pides. Julgar e condenar o Presidente imposto fraudulentamente aos portugueses não era uma questão de vingança, mas de justiça, de respeito pelos que sofreram e morreram durante o Estado Novo. A PIDE tinha mandantes e o Rosa Casaco obedecia a Thomaz. Afinal, o general Humberto Delgado, provável vencedor das eleições de 1958, foi assassinado por ter ousado enfrentá-lo. A ele e a Salazar.

As anedotas tão populares à época sobre o Presidente e a família mais próxima eram uma forma de se fazer oposição ou retratavam a realidade?

Ambas as coisas, embora a insistência nas anedotas seja um exagero desproporcionado, que acabou por justificar que tenha sido absolvido por omissão. Discursos do tipo "é a primeira vez que aqui venho desde a última vez que aqui estive", habitualmente citados, são uma gota de água na sua retórica. Ao longo dos 16 anos em Belém, proferiu, segundo as suas contas, 9305 alocuções.

Esta "biografia" é a final ou um ponto de partida para os académicos esquecidos em o registar?

Nem uma coisa nem outra. É apenas uma primeira tentativa séria de lhe fixar a biografia política. Outras serão bem-vindas, se vierem a existir.

Entre as figuras de segunda linha do salazarismo existe alguma outra que rivalize com o poder que Thomaz adquiriu e exerceu?

Sim, sem dúvida. João Pinto da Costa Leite, o tio de Francisco Sá Carneiro, aquele a quem José Saramago chamava ironicamente o "entre parêntesis Lumbrales", que foi ministro de várias pastas ao longo de 21 anos. É uma personagem que me interessa e sobre o qual já estou a pesquisar. E há ainda o caso do cardeal-patriarca de Lisboa D. Manuel Gonçalves Cerejeira, o grande cúmplice do ditador, que a investigadora Irene Pimentel descobriu encantada que não era grande apreciador da Juventude Hitleriana e o inocentou de todos os pecados, considerando-o o príncipe da Igreja. Imagine-se...

Qual foi destas três obras, uma quase trilogia salazarista, a que lhe deu mais prazer investigar?

A relativa a António Ferro, sem dúvida. Era uma biografia que só poderia ter sido feita por um jornalista, que conhece como ninguém os mecanismos da comunicação. Não era obra para um historiador e foi por isso que nenhum deles se atreveu a escrevê-la.

Continua a haver impedimentos à investigação do Estado Novo?

Há perdas irreparáveis, como é o caso dos documentos destruídos pelo cardeal Cerejeira após a morte de Salazar, e os que foram queimados pela PIDE durante o cerco à sede da António Maria Cardoso. E há ainda documentos de acesso interdito, como acontece com os arquivos históricos do Partido Comunista Português. Mas, de um modo geral, as fontes existem, ainda que por vezes muito dispersas, e podem ser consultadas. A grande dificuldade é o tempo requerido para as pesquisas, que os investigadores académicos geralmente não possuem, por serem obrigados a dar aulas nas universidades, e os investigadores independentes também não, por serem geralmente jornalistas no ativo.

Escreveu sobre Marcelo Caetano e António Ferro. Rodear o protagonista Salazar é a melhor forma de o retratar?

Talvez não seja a melhor, mas é seguramente bastante eficaz. Creio, contudo, que continua a faltar a biografia que a figura de Salazar reclama. A que foi escrita em inglês por Filipe Ribeiro de Menezes, um estrangeirado residente em Dublin, e (mal) traduzida, está longe de ser perfeita. É a única, se excluirmos as memórias de Franco Nogueira, parciais, tendenciosas e repletas de relatos ideologicamente manipulados.

Ainda há muita história para contar sobre o protagonista Salazar?

Sem dúvida. Continuamos ainda sem saber, por exemplo, o que realmente aconteceu no esconderijo secreto que Salazar possuiu ao longo da primeira metade da década de 1950 no Palácio do Sobralinho, em Vila Franca de Xira...

Histórias de Américo Thomaz

Morte de Salazar sabida em São Tomé

Se Salazar jamais visitou as "colónias", Thomaz fazia-o amiúde. Por isso quase perde o funeral do ditador quando estava em visita oficial a São Tomé, como se lê no capítulo 40: "O regresso a Lisboa não se fez de imediato, contrariando o desejo de Thomaz. Quando chega ao aeroporto, Caetano espera-o, inexpressivo. (...) Ostentará pela primeira vez as divisas de almirante, posto a que ascendeu no dia em que Salazar desceu à cova. Thomaz acompanhou a par e passo o cortejo. Agora é ele a principal referência do regime. E Marcello vai ter de contar com isso."

Dar nome a estádio de clube falido

A sua presença nos estádios de futebol não acontece apenas para se deixar fotografar ao lado de Eusébio, pois terá direito a um estádio com o seu nome no Restelo, inaugurado em janeiro de 1970 com um desafio entre o clube proprietário da infraestrutura, o Belenenses, e o Sporting (3-2). No capítulo 38 conta-se o episódio: "A inauguração do estádio é antecedida de uma criativa operação de engenharia contabilística à margem da lei, patrocinada pelo homenageado, que lesa financeiramente o Estado e a autarquia lisboeta. O Belenenses estava falido."

Evitar eternidade na Presidência

Sob o título de "Conspiração falhada", conta-se assim a tentativa de impedir a eternização de Thomaz no cargo: "Esteve prestes a ser impedido de se recandidatar à Presidência em 1972. Só não o foi porque faltou a Caetano a determinação e o vigor antes revelados por Salazar. Furar o bloqueio da tendência ultraconservadora que gravitava em torno do almirante, que impedia uma solução negociada para o problema colonial, e salvar o regime da agonia era o plano alimentado com mais entusiasmo pelos marcelistas do que pelo próprio Marcello."

O Último Salazarista - A Outra Face de Américo Thomaz

Orlando Raimundo

Editora D. Quixote

288 páginas

PVP: 15,90 euros

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