Orelhas moucas

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1. "Nós temos hoje um Presidente visível (Cavaco) e atrás dele temos uma "sombra", que é o (juiz) Carlos Alexandre. É ele que fala dizendo as coisas que o Cavaco sabe mas não pode dizer. E se a gente ver a política assim, de repente, o silêncio do Cavaco, a passividade do Cavaco, tem uma interpretação completamente diferente, porque ele sabe aquilo que os tipos que respondem nas sondagens não fazem a mais pequena ideia que ele sabe." [sic]

Estas declarações são de Joaquim Aguiar, administrador do Grupo Mello, ex-assessor político do Presidente Ramalho Eanes, ex-consultor político do Presidente Mário Soares e habitual comentador televisivo, e constam do livro de Diogo Agostinho e Alexandre Guerra "Insondáveis Sondagens" publicado pela Aletheia.

Como é evidente, e apesar do tom afirmativo, estamos perante uma mera opinião. Escusado seria também dizer que Cavaco Silva e Carlos Alexandre dão importância a quem muito bem entendem. Assim, e dando de barato que conhecem aquelas afirmações, não têm em grande conta as opiniões de Joaquim Aguiar e decidiram desprezá-las. É absolutamente compreensível e é a única explicação plausível para não terem pedido explicações (que se saiba) ao seu autor.

Imagine-se o que seria se alguém pensasse que um juiz era uma espécie de veio de transmissão das convicções dum Presidente da República, que Cavaco Silva fosse uma espécie de informador do poder judicial e este depois atuaria em função dessas informações, o poder judicial como um boneco de ventríloquo. E, claro, como seria que o Presidente obteria essas informações? Através de que investigadores e com que credibilidade? Isso está em que parte das competências dum Presidente da República? Mais a mais, o juiz em causa não é conhecido (e ainda bem, nem isso é suposto) por falar, mas sim por atuar e atuar de forma contundente. Misturar juízes, informação e Presidente é, digamos, muito arriscado.

Talvez a conduta do Presidente da República e do Juiz Carlos Alexandre, ignorando a opinião expressa, seja a mais apropriada, apesar da gravidade. Seguiram assim o ditado popular: palavras loucas, orelhas moucas. É mesmo capaz de ser muito melhor.

2. Já há muito que não concordava com Cavaco Silva, mas na última quarta-feira - fora alguns despropósitos - vi-me a aplaudi-lo.

Como o Presidente da República, tenho a sensação de que não havendo maioria absoluta da atual maioria ou do PS, teremos um governo sem apoio maioritário na Assembleia da República. Uma espécie de reedição do primeiro governo de Cavaco Silva como primeiro-ministro, mas sem o desafogo financeiro da época, e agora sentados no barril de pólvora europeu, com a situação social terrível como a que nos encontramos hoje. Muito provavelmente viveremos um período de campanha eleitoral que começará logo a seguir à aprovação do orçamento. Um governo e uma oposição esperando o momento certo para provocar eleições que permita a um ou a outro obter a maioria absoluta. Uma crise política permanente com consequências fáceis de prever.

Mas não se pode, nomeadamente quando falamos dum Presidente da República, desligar a mensagem do mensageiro. É que quem fez o apelo ao entendimento dos partidos no período pós-eleitoral tinha que ser alguém que os portugueses e todos os partidos ouvissem. E infelizmente para ele e sobretudo para nós, Cavaco está muito longe de ser essa figura.

Nunca na história da democracia portuguesa, um presidente chega a esta altura do seu mandato com uma taxa de popularidade tão baixa - na última sondagem do jornal Público, 84,6% dos inquiridos disseram que o próximo Presidente não deve ter sequer uma atuação parecida com o do atual. Noutras épocas veríamos os partidos a tentarem colar-se ao Presidente. Hoje assistimos aos mais variados ataques.

Mais, os apelos ao consenso não casam com o clima de crispação entre as principais forças políticas que ele, provavelmente sem querer, ajudou a criar. A falta de cuidado que teve em mostrar posições acima dos partidos, a colagem permanente ao Governo (que poderia, pelo menos, não ter tão veementemente publicitado), a falta duma atitude institucionalmente forte quando o Tribunal Constitucional foi atacado, o seu próprio discurso de vitória eleitoral, as declarações sobre as suas pensões, em nada ajudaram. Resultado: neste momento vital não temos alguém que possa de facto ajudar ao estabelecimento de pontes, alguém que fosse ouvido sem preconceitos e com respeito pelos atores político-partidários.

Não vale a pena, como fez no discurso de quarta-feira, dizer que seriam apenas os partidos os responsáveis pela situação pós-eleitoral. Não, se não tivermos entendimentos e cairmos numa situação muito frágil, a responsabilidade será também da pessoa que foi eleita pelos portugueses para os representar, para gerar consensos, para evitar que caíssemos numa situação como aquela em que podemos cair. É que não basta avisar do que pode acontecer, é preciso ajudar a que não aconteça, e Cavaco Silva não ajudou. Não ajudou mesmo nada.

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