ÓPERA

A brincar, a brincar podem fazer-se coisas muito sérias. Foi essa a intenção do compositor britânico Benjamin Britten, que em 1949 quis fazer da elaboração de uma ópera infantil o espectáculo em si. A Gulbenkian leva agora ao palco <em>Vamos Fazer Uma Ópera </em>com um elenco de 36 crianças e um libreto adaptado à realidade do século XXI. <br />
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São 15h00. O grupo está quase todo em palco e ouve-se gritos circenses: «Meninas e meninos, juntos para mais um espectáculo, concentração e vamos começar…» Paulo Matos é um encenador paciente e amistoso, mas lidar com 36 crianças obriga a medidas mais originais. O ensaio começa na página 23, vinte minutos depois da hora marcada.
Há 15 anos o desafio de Vamos Fazer Uma Ópera surgiu no contexto de Lisboa Capital da Cultura. Paulo Matos foi, também então, o encenador da obra do compositor britânico Benjamin Britten: «Em 1994 fiz a experiência de situar a primeira parte numa escola, o que não acontece no original. Esta escola tem um projecto de ópera, que se veria na segunda parte do espectáculo.» O convite da Fundação Calouste Gulbenkian fez Paulo Matos levar o projecto ainda mais longe e assim surgiu a construção de um espectáculo dentro de outro espectáculo.
A história não é difícil de explicar mas surge muitas vezes como imprevisível: os alunos e professores de uma escola contemporânea decidem fazer um projecto para uma ópera que se verá na segunda parte do espectáculo a que podemos assistir desde 19 de Junho e até 1 de Julho no Grande Auditório da Gulbenkian. Novidades? Um jovem fugitivo que se esconde na escola para passar a noite e acaba, surpreendentemente, como protagonista da obra O Pequeno Limpa-Chaminés, um coro de crianças que surge na plateia para cantar e encantar, uma plateia não ensaiada que pode acompanhar o «concerto». Sem trailers, o teatro vence pela imprevisibilidade. Neste caso, o público pode cantar as quatro músicas da ópera se, antecipadamente, enviar um e-mail para descobrir@gulbenkian.pt ou ligar para o número 217823590. As partituras têm sido facultadas ao público em geral, experiência feita em 1994. Paulo Matos recorda que «foi de chorar de alegria. Ver dois terços do público a acompanhar a orquestra é de uma emoção inqualificável».
Paulo Matos é um artista polivalente. Só em ópera conta com quase duas dezenas de encenações, entre grandes e pequenas produções profissionais. O texto da primeira parte é todo da sua autoria. Para a linguagem adaptada a 2009 contou com a ajuda dos filhos adolescentes, de 13 e 16 anos. O trabalho é constante e exigiu o bloco de notas por perto para anotar expressões actuais e o chamado «calão». Já de texto feito e em pleno auditório, o espectáculo vai surgindo aos olhos atentos dos espectadores, sem intervalo, com a ideia de que tudo acontece à vista de todos: concepção, escrita, produção, até que, de repente, a ópera já começou. Do projecto que se vê nascer na primeira parte destacam-se alunos e professores, cada um com um papel específico na ópera. A cada disciplina cabe uma tarefa: a criação de um libreto, com a coordenação do professor de Português, a composição da ópera, com o professor de Informática, a concepção dos cenários e figurinos, com a professora de Design.
A sensação de naturalidade do espectáculo acentua-se quando Paulo Matos afirma que «há elementos de cenografia que serão finalizados em cena».

Heróis sem nome
A peça conta a história de um teatro de escola, mas a qualidade que lhe foi imprimida é largamente superior. Perto de cem crianças foram submetidas a audições e três dezenas foram seleccionadas: quase todas alunas de conceituadas escolas de música da capital, entre os 9 e os 18 anos. Poucas têm experiência na representação, factor que se nota pouco ao longo da peça.
Paula Nora, 41 anos, é uma das heroínas anónimas por detrás do palco, ao trazer diariamente a filha Madalena, de 10, aos ensaios, que na fase final decorrem todos os fins de tarde, entre as 18h00 e as 21h00. Depois, ainda é preciso dar-lhe jantar, ajudá-la nos trabalhos da escola, estudar e, finalmente, descansar. Mas Madalena adora o palco e não acusa cansaço. Em casa, não fala de outra coisa. O tempo é rentabilizado: no banho, o vapor lava o cansaço e ajuda a afinar as cordas vocais. Na escola, com mais três colegas que integram o elenco, tem aulas com a professora de Música, que se disponibilizou para ajudar com as canções mais difíceis. E, diz o encenador, «tem sido maravilhoso e surpreendente assistir ao acréscimo de responsabilidade deles. Ficam com muitas horas de trabalho por dia: aulas, o ensino de música, e depois estes ensaios de três horas ou mais».
O palco é grandioso e respira-se responsabilidade e orgulho, entre brincadeiras e trabalhos manuais. O acréscimo de horas de trabalho fê-los empenharem-se mais e estabelecer um ritmo próprio que lhes permite não perder o bom rendimento escolar, desportivo e de todas as restantes actividades que conseguem enfiar no curto período de 24 horas.

Forte capital humano
Luís Rodrigues é o único membro do elenco de 1994, além de Paulo Matos. O barítono colecciona prémios, em concursos de interpretação ou canto. Este ano, como há 15, sublinha a diversão como principal atractivo do projecto e isso advém, em grande parte, de trabalhar com pequenos artistas. Mas com mais de trinta crianças eufóricas em palco, muitas delas a pisar um desta dimensão pela primeira vez, impõe-se a questão: não cansa?
«É difícil acreditar, mas a verdade é que é muito mais difícil lidar com uma criança apática do que com uma criança activa. Essa energia pode ser canalizada em algo bom, produtivo. E é o que acontece aqui», avança. Também Paula Nora realça a capacidade da equipa para lidar com os mais novos. A mãe de Madalena permitiu que entre os dois anos e meio e os cinco a filha entrasse em duas novelas, anúncios e uma longa-metragem. Quando começou a escola, Paula decidiu que seria o fim da «carreira» de Madalena, porque é uma indústria «desgastante, que os explora e os faz crescer antes de tempo». Até Março deste ano quando, através da escola, soube das audições. «A dinâmica desta peça é diferente, esta produção sabe lidar com as crianças e responde às suas necessidades, não as esgota», acrescenta, orgulhosa.
Luís Campos tem 11 anos e desempenha o papel de João, o jovem delinquente que se torna protagonista. É pequeno – assim tinha de ser, para caber na chaminé – mas solta a voz como se fosse grande. É aluno da Academia de Música de Santa Cecília, e no que toca a representar, reconhece: «Decorar as falas é o mais difícil.» O palco chama-o pela ópera, pela música. Não é adepto de desporto, o que gosta mesmo é de ler, coisa que tem feito pouco: «Como tenho os ensaios não posso, e quando leio, é as falas… para decorar.» Mas o esforço compensa. Em palco, o cabelo cortado à tigela, sempre a voar de um lado para o outro, deixa perceber que é ali que se sente bem.
Catarina Mota e Melo tem 17 anos e este não é o primeiro palco que pisa. A solo, e com 10 anos, fez a Cinderela, pela Culturgest. Mais tarde participou na Flauta Mágica, pela Gulbenkian, e n’A Casinha de Chocolate, no Teatro da Trindade. Aqui, rodeada de pequenos cantores, sente-se responsável. É ponderada e sossegada, perto do grupo que se desloca em massa perante os gritos, por vezes exasperados (depois da segunda hora e meia de ensaio), do encenador: «Ó meus lindos, vá lá, assim não dá…» Para ela, o melhor do palco é «sentir que somos significantes, que temos importância».
Enquanto diz isto chegam à plateia as vozes em palco, os adultos que ensaiam as suas partes na ópera e Catarina olha orgulhosa. Causa arrepios? Catarina assente com a cabeça e assume que ser cantora lírica é um sonho de difícil concretização mas, ainda assim, presente. Por agora, o 11.º ano e os exames ocupam-lhe os planos para um futuro mais ou menos próximo, com o último exame coincidente com o dia de estreia do espectáculo.

A peça no puzzle
Diogo Mesquita é a peça que faltava. Com 26 anos, é o único actor do elenco, o «Paulo Matos» dentro do espectáculo do espectáculo, o encenador da peça dentro da peça. De há quatro anos para cá, findo o curso na Escola Profissional de Teatro de Cascais, integrou o elenco de várias peças do Teatro Experimental de Cascais, Teatro Nacional D. Maria II e muitas produções nacionais, como Floribela, na SIC, ou a novela Dei-te Quase Tudo, na TVI. Apesar do currículo, dentro do núcleo adulto em cena sente-se novo e não gosta de liderar por sentir que é mais um colega do que um professor. «Gosto de ser dirigido, talvez devido à minha idade ou experiência.» Hoje, só sabe que pouco sabe e que na vida tem mais dúvidas do que certezas. «Quando for ao contrário sentir-me-ei mais líder do que hoje», afirma.
O objectivo da peça é permitir que quem assiste saia da sala com um sorriso no rosto. A forma como o consegue, essa sim, é que é diferente. Além de alegre, passa uma mensagem simples e de esperança. «Expressiva e despretensiosa», ouviu-se mais de uma pessoa classificá-la assim.

Let’s Make an Opera
Criado por Benjamin Britten, em 1949, este projecto com libreto do britânico Eric Crozier é uma proposta arrojada de fazer da construção de uma ópera o espectáculo em si. Britten era conhecido pelas suas composições didácticas (com outros trabalhos similares como The Young Person’s Guide to the Orchestra – Guia da Orquestra para Jovens) e moralistas – uma vez que a peça condena o abuso infantil, particularmente dos que sofrem com privações a vários níveis, materializado na personagem de João.
Na concepção do criador, em Let’s Make an Opera a primeira parte do espectáculo envolve uma família e as suas crianças, que decidem construir uma ópera. À peça chamam The Little Sweep (O Pequeno Limpa-Chaminés), a acção decorre no século XIX e conta a história de um pequeno aprendiz de limpa-chaminés forçado a trabalhar desde muito novo, explorado pelos patrões. O seu caminho parece definido, até que fica preso na chaminé da família que se conhece na primeira parte do espectáculo. As crianças ficam solidárias e ajudam-no a fugir a um futuro de sofrimento e trabalho forçado.
A versão criada por Paulo Matos apresenta novidades: a acção passa para uma escola contemporânea, com discurso adaptado ao século em que vivemos e vivências idênticas às de qualquer escola básica destes tempos. João, um menor marginalizado, infiltra-se na escola com a intenção de roubar alguns objectos de valor ou de encontrar um local onde dormir. É descoberto pelos alunos da escola, que o acolhem como um deles e permitem que se torne o protagonista do mais recente projecto escolar: uma ópera.

Escolas de estrelas
As 36 crianças do elenco não são crianças seleccionadas pura e simplesmente, sem qualquer talento mais desenvolvido. Instituto Gregoriano de Lisboa, Academia de Música de Santa Cecília, Academia de Amadores de Música, Fundação Musical dos Amigos das Crianças, Escola de Música do Conservatório Nacional, são as instituições formadoras destes jovens, alguns deles com tantos anos de ensino de música como de ensino regular. Do coro que na segunda parte da peça surge de surpresa na plateia destacam-se algumas vozes, mas é a qualidade de conjunto que impressiona e cativa o público, convidado a juntar-se a eles, mesmo com vozes destreinadas.

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