Ópera: uma mulher normal forçada a ser extraordinária
Após a sua Ilia, no "Idomeneo" (Mozart) da pretérita temporada, Ana Quintans regressa ao São Carlos para um dos grandes papéis trágicos do repertório: a Alceste da ópera homónima de Gluck. Esta é também ocasião para o regresso a Lisboa de Graham Vick, um dos grandes encenadores de ópera do nosso tempo, que explicou ao DN o que está em causa.
Sobre o papel titular, começa com um "Meu Deus!", para depois se alargar: "É um papel fantástico para ela [Ana Quintans], e um desafio fantástico também! Um papel extenso, uma personagem que nunca repousa e na qual é preciso estar sempre atento ao colorido, à "nuance" em cada intervenção. À primeira vista, parece uma personagem de início ao fim sob o signo da infelicidade, mas quando se "escava", percebe-se que está ali um ser humano fascinante e bem próximo de nós. E para trazer isso à tona, não basta um bom cantor, é preciso um artista "de mão cheia". Alguém que consiga identificar-se momento a momento com o que a personagem vive, e que consiga, por um lado, moldar toda e cada ideia inscritas no texto e na música; e, por outro, dar um cunho pessoal às canções [termo que Graham Vick prefere, aqui, ao de "árias"] que pontuam o seu papel".
Características mais que suficientes, a seu ver, para fazer de Alceste "uma "grande dame tragédienne"", mas algo que não deverá pressupor, ressalva, que seja cantado por sopranos de "grandes" vozes: "Não, o papel sofre se assim for. Um papel comparável é o de Leonore, no Fidelio [Beethoven], com o qual se tem cometido o mesmo erro: têm que ser vozes flexíveis, fluidas e capazes de uma "coloratura" macia. Aliás, foi a partir de Leonore que eu comecei a refletir sobre que Alceste pretendia, além de que ambas as óperas fazem o elogio do amor conjugal. Se reparar, ambas tratam a história de uma mulher comum que por acidente se vê na situação de ter que salvar a vida do marido. E assim como Leonore não "nasceu" para ser uma Brünnhilde, também Alceste não nasceu para ser uma Medeia!"
Daí que na sua encenação "Admeto e Alceste não são um casal real [como no mito original], mas antes um casal normal, com dois filhos. As pessoas ao redor deles são a sua família alargada e Admeto é alguém que todos adoram."
A encenação situa-se fora de qualquer tempo histórico e cronológico, refere : "Estamos a lidar com mito intemporal, logo aquele é um mundo teatral autossuficiente de pictóricos frescos e de parábolas; um mundo inteiro contido no palco em que as personagens são toda a gente, fazendo deste espetáculo uma experiência comunitária." Para tal contribui igualmente o coro, que "tem um papel determinante. Estão praticamente sempre em palco" e, à maneira de um coro grego clássico, "cantam, dança, riem, gritam, choram, falam para o público. Vemos a história e partilhamo-la através dos seus olhos", conclui.
Indissociável desta ópera é o epíteto de "reformista", já que ela serviu, por assim dizer, de "showcase" a uma mudança estética ocorrida na época na ópera e da qual Gluck foi o principal proponente. Mas Vick prefere abordar outros aspetos, até porque a versão que iremos ver é a francesa (cantada em francês), estreada em Paris, em abril de 1776: "É uma obra de grande génio, com música do mais alto nível e um libreto sofisticadíssimo. Por exemplo, é óbvia a "presença" desta obra em óperas [5 a 15 anos mais tardias] de Mozart, como "Idomeneo", "A flauta mágica" ou a cena do Comendador no "Don Giovanni", que mostram que Mozart conhecia bem "Alceste"."
Graham Vick diz ser necessário ultrapassar "o ponto de vista neoclássico, que olha para Gluck da frente para trás e que tem cristalizado e solenizado a sua música e, em paralelo, tem aplanado a riqueza dos libretos". Do libreto francês desta ópera diz ser "de uma qualidade absolutamente extraordinária! Por isso escolhi esta versão [cantada em francês], dado que a qualidade literária do texto de Bland du Roullet é superior à do texto italiano de Ranieri de Calzabigi: mais complexo, mais belo, mais sofisticado. E a música de Gluck adapta-se, na minha opinião, às características intrínsecas da língua francesa melhor do que às da língua italiana."
O encenador realçará ainda "a inserção de momentos alegres e cómicos numa "tragédie lyrique", inusual para os cânones da época, mas natural para mim, que "cresci" com o exemplo das tragédias de Shakespeare..."
Para Graham Vick, a viragem de Alceste dá-se "a partir do momento em que ela se oferece para morrer, de modo a salvar a vida do marido. Depois é o assumir da decisão e daí em diante revela-se-nos esta personagem fenomenal, tão cheia de imperfeições humanas - quem diz que ela é heróica?", lança. Vick fala do "drama conjugal que surge quando o marido descobre" e nessa conflitualidade, "exprimida no libreto com toda a crueza", Alceste irá questionar "a validade e os fundamentos da sua decisão primeira." Será, para ambos, um caminho de "crescimento psicológico e de progressiva compreensão do que é o amor, do que há de possessivo e de desprendido nele, de egoísta e de altruísta." Mas Vick vê aqui mais do que (só) o amor: "Trata-se de uma experiência que os leva a reconsiderar e reavaliar os sentimentos que nutrem um pelo outro e as suas atitudes diante da vida, da morte e dos valores que estão em jogo na conservação da vida." Um drama conjugal, no fundo? "Certamente! De novo: lembre-se do "Fidelio", cujo subtítulo é "Leonore ou o amor conjugal". É exatamente a mesma coisa aqui. [ri-se]"
Original na versão francesa é a inserção de um novo personagem, o herói Hércules, no III ato: "Foi uma adição muito bem discernida por Gluck e du Roullet", observa, "já que Hércules é importante para a experiência teatral global. Acho que ele traz consigo uma humanidade que é bem-vinda naquele momento particular. Há na personagem cor, vida, entusiasmo e humor, e essas qualidades "agarram" o público, que por esta altura do drama corria o risco de menosprezar a beleza que lhe é dada, por efeito de uma atmosfera anímica pintada sempre em tons semelhantes." Tanto assim é que, continua, "decidi "esticar" ao máximo na encenação esses seus atributos: o humor, a alegria, a esperança, o heroísmo, o apelo popular do mito." No final, acaba por tudo confessar: "Hércules é o super-homem, é isso. Um super-herói que contorna os deuses e "dá cabo" do mundo dos mortos para trazer de volta Alceste [risos]".
Curioso nesta ópera é sempre a forma como resolver cenicamente a cena final, em que Alceste é resgatada [por Hércules] do mundo dos mortos para de novo se reunir ao marido: "Ah, isso é uma "senhora" pergunta!... [ri-se]", começa por dizer o encenador, relutante em revelar os seus "segredos". Mas acede, conquanto só parcialmente: "Estamos num mundo de amor, onde não há lugar para temer a morte. [silêncio]" E? - insistimos. "Isso é uma das surpresas do espetáculo e eu não quero ser desmancha-prazeres!", defende-se. Mas lá acaba por levantar um pouco o véu: "Protagonista na cena final é Apolo, não por acaso o deus protetor da casa de Admeto: ele confere o dom da imortalidade a Hércules e oferta a Admeto e a Alceste uma vida em que foi suprimido o temor da morte. Ele proclama... [aqui interrompe o discurso para se perguntar até onde deve ir no desvelar do desenlace] proclama o céu na terra, no fundo."
Daí que não haja aqui, para Vick, lugar para uma ilustração do famoso verso de Virgílio, segundo o qual "omnia vincit amor": "O amor não é o que conquista, mas o que ensina" E o "prémio" de Apolo, no final, "enaltece um amor que foi capaz de transcender a morte".
autor: Christoph Willibald Gluck (1714-87)
libreto: François Le Bland du Roullet, a partir do original (1767) de Ranieri de Calzabigi
intérpretes: Ana Quintans, Leonardo Cortellazzi, Alexandre Duhamel et al., Coro São Carlos, Orq. Sinf. Portuguesa
direcção musical: Graeme Jenkins
encenação: Graham Vick (nova produção)
récitas: 19, 21, 23 e 25 (20.00), dia 27 (16.00)
bilhetes: dos 19 aos 60 €