Opaco 2
Que concluiria um cidadão comum que se limitasse a ler a nota da Presidência da República da passada terça-feira? Apenas que qualquer coisa de grave se anunciava nas entrelinhas do comunicado, escrito naquela linguagem cifrada tão cara aos constitucionalistas. Por curiosa ironia, quem traduziu o «constitucionalês» para português corrente foi o (ainda) primeiro-ministro, ao sair da audiência daquele dia com o Presidente. Foi Santana quem esclareceu, preto no branco, que Sampaio lhe anunciara a intenção de dissolver o Parlamento, suscitando assim a queda do Governo. O sujeito da decisão não falou. Falou por intermédio do objecto dela. Não deveria ter sido o contrário?
Entretanto, questionado pelos jornalistas numa inauguração, o Presidente veio dizer que o Governo e o Parlamento se mantinham, por enquanto, na plenitude das suas funções, deixando aberta a porta à aprovação do Orçamento. Constitucionalmente, formalmente, será, de facto, assim. Mas é o mesmo que dizer a alguém com morte já decretada que deve fingir estoicamente o contrário e viver a sua vida como se nada fosse. Para além das susceptibilidades pessoais de Mota Amaral por não ter sido informado da dissolução anunciada, a verdade é que o Parlamento está mesmo «ferido de morte». E ninguém «ferido de morte» deve ser chamado a simular uma prova de vida para salvar as aparências (e conveniências) de um Orçamento que deixou de fazer sentido.
Há decerto formalismos inerentes à natureza das instituições, designadamente quando se trata da Presidência da República. Insisto, porém: o excesso de opacidade corrói a transparência democrática e a identificação dos cidadãos com a coisa pública. Ora isto não é menos importante do que a estabilidade política. As eleições antecipadas tornaram-se indispensáveis, mas é preciso pagar e assumir o seu preço.