Ontem já era tarde

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As palavras, como os antibióticos, perdem eficácia quando usadas com descuido: quando se abusa delas, por exemplo, ou quando, de tão repetidas sem produzirem qualquer efeito, se esvaziam, se esfumam de sentido. O resultado é que, mais cedo que tarde, quando realmente necessitamos deles, descobrimos que já não servem, e a infeção progride. Assim é, diante dos fogos, a conversa há dezenas de anos repetida sobre as alterações climáticas, as famosas "causas estruturais" que explicam a proporção dos incêndios que nos infernizam cada Verão e as igualmente afamadas "reformas da floresta e da estrutura fundiária" nacional.

À hora que vos escrevo, os ministros da Agricultura da União Europeia estão reunidos em Bruxelas, cidade onde a temperatura deverá chegar os 40 graus centígrados, tal como em Londres. Isto enquanto a onda de calor tórrido atinge sobretudo vários países do Sul, e uma gigantesca vaga de incêndios florestais devasta milhões de hectares em Portugal, Espanha, França e Itália. Esta reunião coincide, aliás, com a divulgação de um relatório da Comissão onde se reconhece o que todos pressentimos: "A seca severa que afeta diversas regiões da Europa desde o início do ano continua a expandir-se e a agravar-se", devido à combinação de falta de chuva e ondas de calor.

Não basta atirar dinheiro e conversa piedosa para cima das tragédias. Os cientistas, que há anos previnem para o que está a ocorrer, dizem que isto é apenas uma amostra do que está para vir nas próximas décadas, mesmo no cenário mais otimista, embora cada vez mais improvável, em que a Europa e o resto do mundo atinjam a neutralidade climática por volta de 2050. As consequências variam de região para região: em suma, a subida do nível do mar ameaçará as áreas costeiras, os países do Sul estarão mais expostos a ondas de calor perigosas, secas e incêndios florestais, enquanto chuvas torrenciais e inundações atingirão outras partes da Europa.

Destaquedestaque"Não basta atirar dinheiro e conversa piedosa para cima das tragédias. Mais do que premiar bombeiros pelos fogos que conseguem extinguir, deveríamos remunerá-los melhor pelos fogos que conseguem evitar"

Às condições meteorológicas extremas há que acrescentar fatores que agravam o risco e as consequências dos incêndios. O aumento das temperaturas faz com que haja mais evaporação de água e diminuam as reservas de aquíferos. Um qualquer bosque sobrecarregado de massa florestal, que em condições normais já necessitaria de mais água, sofre "um stress hídrico adicional que o torna mais vulnerável ao fogo". Acresce que a massa florestal inerte, que ninguém limpa, aumenta em extensões contínuas cada vez maiores que também ninguém gere.

Estamos, portanto, perante um novo cenário em que as situações extremas tendem a repetir-se com maior frequência. E há um novo padrão de incêndios florestais em que, atingindo o fogo maiores proporções, já é muito mais difícil de apagar: o próprio fogo cria as condições adicionais de secura e calor que impedem a sua extinção. Em muitos casos, aliás, a água derramada do ar, no combate com meios aéreos, evapora-se antes de chegar às chamas. O aquecimento global está a provocar um círculo vicioso de que dificilmente poderemos escapar sem, verdadeiramente, enfrentar os tão famosos fatores estruturais. E está mais que na hora de introduzir na gestão do ambiente e do nosso mundo rural as mudanças que lhe permitam adaptar-se melhor à nova realidade que as alterações climáticas impõem.

Para sair desta espiral não basta aumentar os meios de combate, que de todos os modos haverá que ampliar. Mais do que premiar bombeiros pelos fogos que conseguem extinguir, deveríamos remunerá-los melhor pelos fogos que conseguem evitar. Apagar incêndios é importante, mas mais ainda é prevenir os de amanhã. Ano após ano, palavras e mais palavras, ouvimos falar da urgência em promover as reformas da floresta e da estrutura fundiária. Ontem já era tarde.


Jornalista

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