Onde o Diabo mostra a cara

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Só estive uma vez em Israel e na Palestina. Foi há 10 anos, e aqueles metros quadrados mais disputados do planeta não são lugares onde apeteça voltar. Entre um e outro, a separá-los, há gigantescos muros de betão, quilómetros de arame farpado, ódios, checkpoints e rancores. Há os muros visíveis, marcados como cicatrizes sobre uma terra inóspita, e outros, menos evidentes, porém, mais radicais. Haverá poucos lugares no mundo onde o Diabo se deixe ver tanto como na Terra Santa: ora na ponta da espada do Faraó egípcio, há 3000 anos; ou ao comando das brigadas assassinas do Hamas, há três semanas; ora no rosto de um primeiro-ministro que ordena agora o arraso indiscriminado de um povo. De permeio, o demónio andou por ali com babilónios, romanos, cruzados e outros enviados celestiais das três grandes religiões monoteístas - judaica, cristã e muçulmana - e todos, olho por olho, bomba por bomba, a mais antiga lei escrita com sangue.

Desta vez, a dor e a contagem de mortos ainda não dá tempo para o luto, numa guerra em que contá-la supõe também participar dela, já que as partes em conflito usam vocabulários opostos para relatar cada episódio sangrento, e é muito difícil para os repórteres no terreno evitarem ser considerados tendenciosos, e distanciarem-se da semântica oficial de cada lado beligerante.

Há palavras que queimam. Já em 2013, aquando da minha viagem ao Médio Oriente, o International Press Institute (IPI) tinha acabado de difundir um extenso guia que listava as expressões jornalísticas contaminadas pelo conflito entre Israel e a Palestina - aquelas expressões que resultam ofensivas para um lado ou para o outro, e propunha termos neutros para cada caso. O título deste guia era Use With Care (Utilize com cuidado) e foi editado após reuniões consensuais entre especialistas de ambas as partes. Ali encontramos referência a termos considerados vexatórios para os palestinianos: o que os israelitas chamam de "muro de segurança" é para eles o "muro da segregação", com o guia a recomendar aos jornalistas que usem a expressão "barreira de separação"; da mesma forma que se aconselha a denominação de West Bank (Cisjordânia) e não Judeia ou Samaria para designar áreas em disputa, uma vez que estes são topónimos constantes da Bíblia, e usá-los justificaria a posse histórica de Israel sobre tais territórios.

E há expressões que são igualmente ofensivas para os israelitas: um exemplo vulgar é referir o "Governo de Telavive" em vez de dizer Israel, um nome geralmente evitado pelos setores palestinianos, por presumir a legitimação do Estado criado em 1948; outro exemplo é a referência às "forças de ocupação israelitas" em vez de dizer simplesmente "Exército".

A listagem organizada pelo IPI aproxima-se da centena de casos, mas é desanimador que para muitos termos nos são dadas as versões palestiniana e israelita, não se tendo sugerido qualquer expressão neutra para os substituir, porque não as há - quando, ainda assim, há coisas de que é impossível falar sem assumir um posicionamento, ou parecer tomar partido. E também aqui a linguagem revela o caminho sem saída a que este conflito ameaça conduzir.

Na vizinhança de Israel e da Palestina, toda a região se aproxima rapidamente do ponto de incandescência, sinalizado pela chegada de uma poderosa Força Naval e Aérea dos Estados Unidos ao Mediterrâneo e ao Golfo. Isto, enquanto a ONU, instituição encarregada de prevenir guerras e especialmente o seu órgão máximo, o Conselho de Segurança, estão paralisados desde que Putin invadiu a Ucrânia. Resta apenas a voz de Guterres, que muitos gostariam de silenciar, especialmente em Jerusalém.

Quando o mundo se mostra incapaz de apelar a uma só voz ao fim da violência entre Israel e a Palestina, é porque nos resignámos à espiral de fanatismo que leva à catástrofe. É o Diabo a mostrar a cara.

Jornalista

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