Onde estavas no dia 25 de Abril de 1974?
O cronista recorre à memória, quando a atualidade o excede. A crise política é o elefante que não está já só no meio da sala: ele passeia-se agora por toda a sala, a esmagar recordações e realidades, esperanças e promessas.
Estamos nas vésperas do cinquentenário do 25 de Abril. Como podemos olhar com confiança para o futuro, enquanto o elefante continua a sua marcha arrasadora à volta da sala? Como poderemos defender a pequena luz bruxuleante (Jorge de Sena) dessa liberdade que reconquistámos e não queremos perder? Como manter a esperança no meio da desolação?
Num momento em que as ameaças à democracia nunca foram tão fortes, lembro-me da pergunta canónica de Baptista Bastos, que deu título a esta crónica, e escrevo de uma memória feliz contra um presente sombrio.
No jornal República, onde eu colaborava então, a convite do Mário Mesquita, os nossos colegas comunistas defendiam a inconsistência da "ilusão militarista", porque só um "levantamento nacional armado" (que não víamos muito bem donde viria) poderia pôr fim à ditadura. Álvaro Guerra e Carlos Albino, por dentro da conspiração, abanavam a cabeça e sorriam daquela juventude convencida e dogmática. Eu, sem as informações, ainda que crípticas, de Melo Antunes, que fora transferido para os Açores, e considerando o falhado "Golpe das Caldas" de 16 de março, tendia para o ceticismo.
Nesse tempo, ter um telefone em casa implicava uma longa espera, e havia já dois anos que eu tinha pedido a sua instalação, sem consequências. Por isso, foi a vizinha de cima que veio bater à minha porta naquela manhã e me disse para ligar o rádio.
Lembro-me de andar todo o dia a pé pela cidade e ver as ruas cheias de gente deambulante e excitada, como quem acorda de um sonho e tarda a reconhecer a realidade que o rodeia. A liberdade espalhava-se pelas ruas, brilhava no reflexo das armas e dos capacetes dos militares, dividia-se nas multidões várias que corriam, no boca a boca que nos trazia as boas notícias e os desvairados rumores, ressoava nos aplausos e nos gritos de alegria, como nos tiros perdidos, aqui e ali.
Não fui para o Largo do Carmo, fiquei pela redação do República, na Rua da Misericórdia. Os populares vinham aplaudir às nossas janelas e em seguida desciam o Chiado em direção ao edifício da sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, donde vieram os primeiros tiros e os únicos mortos daquele dia. De todo os outros jornais saíam edições anunciando "não-visado pela Comissão de Censura", com a alegria de uma primeira vez. Lembro-me de nesse dia almoçar no restaurante Mealhada com um grande grupo e ficar confuso por podermos falar de política em voz tão alta, sem recear os ouvidos à volta, tal como, quando da chegada de Mário Soares a Santa Apolónia, continuei com o reflexo de procurar ao longe, atrás da manifestação, os vultos da polícia de choque, para poder preparar a fuga.
Os PIDEs, tão presentes nas nossas vidas e nos nossos medos, espreitando das mesas do café para as nossas mesas, espreitando por dentro das manifestações e das reuniões de alunos, entrando violentamente, à bofetada e ao pontapé, nas salas de estudo que tínhamos transformado em sedes de propaganda clandestina, disparando por vezes e matando, como fizeram ao colega Ribeiro dos Santos, os PIDEs tinham desaparecido da nossa vista, detidos para não serem massacrados.
De que valem estas recordações do passado nos dias cinzentos que estamos a viver? Talvez elas possam reacender a pequena luz bruxuleante, talvez lembrar Abril seja hoje, mais do que uma comemoração, um ato de resistência. Contra o elefante no meio da sala, contra a degradação da democracia, contra tudo o que contra Abril se levanta. Ou, como escrevia o poeta Manuel Gusmão, contra toda a evidência em contrário a alegria.
Diplomata e escritor