Onde estavas no 11 de setembro?

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Temos vivido dias de grande comoção pelo desaparecimento do Presidente Jorge Sampaio, quase coincidente com a memória de um dia que vinte anos passados continua em carne viva. Foi quase unânime a homenagem a Jorge Sampaio - um homem raro e bom - mas a mais expressiva chegou de Timor-Leste, onde foram decretados três dias de luto nacional, expressando a gratidão pelo seu empenho militante na independência do país.

Jorge Sampaio foi um homem de causas que combateu acima de tudo pela dignidade e pelo respeito humanos. As muitas vozes que o evocaram referiram diferentes faces da sua ação - líder das crises académicas de 1962, advogado de presos políticos, presidente da Câmara de Lisboa, Presidente da República - todas movidas pela coerência e pelo sentido de serviço público. Nestes 20 anos, que tristemente comemoram o 11 de setembro, recordo o seu desempenho como primeiro Alto Representante das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações, depois de ter sido enviado especial do Secretário-Geral para a erradicação da tuberculose.

A Aliança das Civilizações foi uma iniciativa lançada em 2005, num momento em que cresciam os conflitos internacionais movidos por interesses e ódios ancestrais, para mover os Estados a adotar um conjunto de recomendações para estabelecer o diálogo entre as sociedades ocidentais e muçulmanas. Na altura, o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, reuniu um grupo de alto nível, em que estavam representadas diferentes religiões e culturas, que elaborou propostas de ação para aprofundar o mútuo conhecimento, de forma a reduzir as tensões interculturais e construir pontes entre comunidades. A intervenção centrou-se em quatro áreas prioritárias: Juventude, Educação, Comunicação Social e Migrações.

Jorge Sampaio foi o primeiro representante designado e, apesar da imensa dificuldade, foi no seu mandato que muitos passos se deram para a absoluta necessidade de conhecer melhor o outro. Em 2013, no momento de passar o testemunho ao sucessor, Jorge Sampaio terminou a intervenção com a frase lapidar: "O que é preciso não é falar, é fazer". E ele continuou a fazer, lançando uma plataforma que mobilizou uma vasta rede de parceiros, através da qual foi possível apoiar a formação superior de dezenas de jovens sírios, projeto que agora queria estender aos estudantes afegãos. Por este meio, continuou a promover o diálogo entre culturas que mal se conhecem e acreditar que a mudança está nos mais novos e se pode fazer através da educação.

Quando revemos os antecedentes do 11 de setembro e acompanhamos o desenrolar dos últimos 20 anos, surpreende (ou talvez não) como se insiste em modelos condenados ao fracasso, exportando formas de intervenção desajustadas das realidades locais. Nada como ver o hilariante filme de David Michôd, Máquina de Guerra (2017), que percorre (e antecipa) a trajetória de desastres no Afeganistão.
Na década de 80 do século passado, o filósofo e linguista búlgaro radicado em França, Tzvetan Todorov (1949-2017), depois de se ter dedicado vários anos à crítica literária, publicou uma obra surpreendente, A Conquista da América (1982) e, no ano seguinte, um conjunto de narrativas astecas sobre a conquista espanhola (1983), a que se seguiu Nós e os Outros (1989). Inspirado, decerto, pela experiência de imigrante em França, o nó central desta sua nova linha de reflexão é o conjunto de equívocos, muitas vezes geradores de violência, que se erguem entre pessoas de culturas diferentes, e a tendência para cristalizar as representações do Outro segundo a bitola da nossa visão do mundo. Acresce a tendência para hierarquizar as civilizações e, por isso, menosprezar as que são consideradas menos evoluídas. No entanto, se aprendêssemos a empatia, ficaríamos surpreendidos com o que podemos aprender com os tais "menos civilizados". Essa é a maior lição que nos deixa Jorge Sampaio: a capacidade de escutar e aprender com o outro, recuperando a profunda cultura e contributo das diferentes civilizações.

Não podemos esquecer a barbárie do 11 de setembro. Temos, porém, de refletir sobre os trilhos escolhidos para contrariar a barbárie, às vezes somando-lhe barbárie. O caminho pode ser outro se conseguirmos integrar na educação a capacidade de entender e valorizar o outro diverso de nós.


Diretora em Portugal da Organização de Estados Ibero-Americanos

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