Onde aparece um Caça-Fantasmas... (Episódio 34)

FICÇÃO POLÍTICA. Quatro dias com o excelente isco que era o Presidente Marcelo, o célebre propagandista, a folhear livros, a debruçar-se sobre capas e a trocar uma loura gentil por um título - era política cultural, da melhor...
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No Palácio, livros. A cidade já tivera uma feira do livro, havia poucas semanas, habitual, anual, em fim de primavera. Ao acabar do verão, o Presidente teve a ideia de nova feira, dessa vez entre os buxos dos jardins do Palácio de Belém. Para não repetir, chamou-lhe Festa do Livro. Feira ou festa, o que interessava era aquela coisa retangular, capeada e folheada - o livro. Marcelo, o Livreiro, assim seria o cognome se os presidentes guardassem o hábito antigo dos cognomes.

As milhentas fotos que faziam a Marcelo mostravam outro seu gosto genuíno, pessoas. Era impossível apanhá-lo, entre tantos abraços, conversas e selfies, indiferente à gente ao redor. Porém, nesse dia de festa entre os canteiros do palácio, havia uma foto em que uma feirante, loura e radiante, lhe estendia a mão por cima da banca. Em vão.

Não que a mão presidencial lhe falhasse, foi-lhe entregue. Mas isso até era pior, pois Marcelo não podia invocar não tê-la visto. Viu, deu a mão, mas a sua atenção desandara: os olhos dele já pousavam por livros de crianças ou talvez para aquele calhamaço em que o nome "Eça" gritava ou para aquela capa em que a poeta brasileira Cecília Meireles partia para a terra dos seus antepassados açorianos. Este último chamava-se Diário de Bordo, dizendo, aí, a intenção de todo o livro, fazer-nos embarcar nele e partir. A, por um momento, desprezada livreira haveria de compreender o devaneio de Marcelo...

Como, depois disso, dizer-se que não havia políticas em Portugal? Isto é, dizer-se não haver daquelas ideias pensadas para servirem o país e com proposta prática? Prática (definição): com dinheiro para serem executadas. Quem levantasse os olhos dos buxos, mesmo antes de se chegar ao Tejo, à esquerda, teria logo a explicação do que ser prático não era: o Museu dos Coches, muito bonito, mas talvez não para os tempos atuais de penúria. Então, quatro dias com o excelente isco que era o Presidente Marcelo, o célebre propagandista, a folhear livros, a debruçar-se sobre capas e a trocar uma loura gentil por um título - era política cultural, da melhor. E, não esquecer, a tal palavrinha: prática.

Por coincidência, por aqueles dias de uma política cultural ditada pela mais alta instância do Estado - focando um bem essencial e prático - acontecia também o mais importante contributo cultural de 2016 e, esse, vindo da iniciativa privada. Um jornal, o Expresso, desenterrara um monumento façanhudo e belo, e oferecia-o grátis: oito semanas - oito - com amores de perdição e anjos caídos... Resumindo, Camilo, o da língua mais tersa, violenta e irónica da língua portuguesa. Muitas dezenas de milhares de pessoas a deitar-se a ler, grátis: "Eram castas estas duas irmãs como as melancias são frescas e os tremoços são sensaborões - era seu feitio e sua natureza!" Que a coincidência público-privada tivesse acontecido sem combinação prévia era sinal de que Portugal estava talvez a melhorar. A pobreza, se houver consciência dela, podia ser afinal como o álcool, que arde mas ajuda a curar.

Numa das suas novelas, O Degredado - também no tal bodo - Camilo Castelo Branco avisava que não trabalhava para aquecer. Quer dizer, em vida, ele fazia por que as gazetas lhe pagassem (sempre mal) os folhetins, mas o aviso era para os tempos póstumos: "Este livrinho tem intuitos graves, e encerra uma ideia encoberta, porque ideias descobertas já raramente aparece uma." Não interessava a que ideia camiliana se referia (aliás, no caso daquela novela, era só mais um pretexto para usar do sarcasmo sob o qual ele escondia o moralista). Interessava, sim, era conjeturar que o pequeno mandato até agora seguido por Marcelo tinha também intuitos graves e encerrava uma ideia encoberta.

Tanto afeto era para catalisar os portugueses no personagem. Não procurem em políticos estrangeiros ou nacionais um modelo, porque isso mede-se à vista, e não havia. Em geral, porém, havia um exemplo similar: Bill Murray, o ator de bons e maus filmes - Os Caça-Fantasmas, O Feitiço do Tempo (Groundhog Day), O Amor É Um Lugar Estranho (Lost in Translation)... - que sempre se impunha nas cenas em que aparecia. De há uns tempos, Murray resolvera fazer estranhas aparições. Nos lugares mais comuns, restaurantes de aeroporto, bares de cidadezinhas, ele passava por uma mesa, roubava uma batata frita, engolia-a e andava.

As redes sociais começaram a dar conta desses raides. Muitas das vítimas escreviam: "Não vão acreditar no que me sucedeu..." E as aparições continuavam, a perplexidade mantinha-se e também isto: toda a gente se encantava com o que Bill Murray lhes fazia. Porquê? Porque era ele.

Com Marcelo, o mesmo. Antes de se discutir o que ele se fazia, parta-se disto: as pessoas gostavam dele.

Continua amanhã. Leia os episódios anteriores do Folhetim de Verão:

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