Onde a pagaia pode ser mais popular do que uma bola

Nas águas do rio Lima, dezenas de miúdos fazem desfilar canoas e caiaques que já se tornaram elementos indispensáveis na paisagem local. O sucesso de Fernando Pimenta, o vice-campeão olímpico nos Jogos de Londres 2012, deu ainda mais popularidade à canoagem e tornou-se a referência principal dos sonhos que alimentam as pagaiadas.
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Pouco depois da saída da A3, um outdoor numa rotunda lembra--nos ao que vamos. Lá está a imagem de Fernando Pimenta, sorridente, a receber quem chega. "Ponte de Lima, terra de campeões", anuncia o cartaz. O mais titulado atleta da canoagem portuguesa, medalha de prata nos últimos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012 (onde fez dupla com Emanuel Silva), é o cartão-de-visita mais mediático da "vila mais antiga de Portugal", a "capital do arroz de sarrabulho e do vinho verde", slogans tradicionais que agora partilham fama com o canoísta.

Vamos habituar-nos à presença de Fernando Pimenta à medida que percorremos a vila. Seja em imagens ou nas conversas. Aqui, Cristiano Ronaldo só pode aspirar à medalha de prata da popularidade. À chegada ao Clube Náutico de Ponte de Lima (CNPL), um novo cartaz mostra outra foto de Pimenta, claro, mas também de Nuno Barros, Rui Lacerda e Samuel Amorim. Quatro atletas medalhados em provas internacionais. "Escola de campeões", lê-se no pano colocado na fachada de um pavilhão moderno na margem direita do Lima.

Lá dentro, dezenas de canoas e caiaques repousam armazenados em várias filas. À entrada, dois rapazes com corpo de homem já moldado montam o leme no caiaque que vão levar para a água. Henrique Mendes, de 17 anos, e Roberto Maciel, de 16, fazem par num K2 júnior e são dois dos 250 atletas que o clube tem inscritos. "A seguir aos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, chegámos a ter mais de 300 atletas federados, foi um recorde nacional", recorda o presidente do clube, Luís Capitolina. A medalha de Fernando Pimenta (e Emanuel Silva) levou mais miúdos da terra a quererem imitar o novo ídolo, claro. Henrique e Roberto não o escondem. Fernando Pimenta é "a grande referência".

Por estes dias, o vice-campeão olímpico não se vê nas águas do Lima, porque está em estágio na zona centro a preparar a presença nos próximos Mundiais de canoagem, que começam dia 19 em Milão (Itália) e nos quais se vai decidir grande parte do apuramento olímpico para os Jogos do Rio de Janeiro do próximo ano. Mas, garantem todos, é frequente vê-lo a remar ao lado dos mais novos, a dar-lhes conselhos, incentivá-los. "Os miúdos ficam todos entusiasmados", revela Nuno Morais, um ex-atleta que treina as crianças que se inscreveram na escolinha de novos talentos, o projeto de férias desportivas que prepara os novatos para as Pagaiadas (do termo "pagaia", a pá que permite manobrar a canoa) do fim de verão, a primeira competição que o clube organiza e que funciona como uma seleção inicial de talentos.

A importância do prof. Lucas

Como desporto de competição, a canoagem em Portugal terá nascido em Vila do Conde, onde o Ginásio Fluvial Vilacondense ostenta o título de clube mais antigo do país, muito pela ação de Manuel Ramos, um ex-atleta que entretanto ganhou fama como Nelo, o maior produtor de canoas e caiaques do mundo. Mas Ponte de Lima e o seu Clube Náutico têm--se tornado o centro principal de desenvolvimento da modalidade ao longo dos últimos anos. Fernando Pimenta é causa e efeito.

Os sucessos do mais medalhado canoísta português trouxeram mais visibilidade e alcance ao projeto, mas ele próprio é já também fruto de um trabalho de fundo que tem um nome principal na ficha técnica, aponta Luís Capitolina: Hélio Lucas, filho de dois dos sócios fundadores do CNPL, atual diretor técnico do clube, treinador de Fernando Pimenta e considerado uma sumidade na canoagem. "Penso que não há na modalidade em Portugal outra pessoa responsável por tantos títulos e medalhas quanto o prof. Lucas", refere o presidente.

"O clube nasceu em 1991, mas o desenvolvimento da modalidade aqui em Ponte de Lima remonta, sobretudo, a 2006, graças à vinda do professor Hélio Lucas para professor de Educação Física no agrupamento. Desde então foi estabelecido um protocolo e todos os miúdos das escolas passam por aqui", explica o jovem dirigente. Foi assim que a maioria dos atletas entrou em contacto e se rendeu à canoagem. Como o Henrique e o Roberto, que tentam perseguir os exemplos dos ídolos estampados no cartaz que decora a fachada. "Todos gostávamos de ser como eles. Aqui a canoagem é mais popular do que o futebol", diz.

Luís Magalhães, pai do João (17 anos) e do Nuno (13), outros dois jovens atletas do clube, confirma: "O mais velho veio fazer as pagaiadas de verão na altura em que ia jogar futebol para os infantis dos Limianos, mas gostou tanto disto que já não quis saber da bola. Fique lá com dois pares de chuteiras novas, que já não usou." Luís, que integra também a recém-criada equipa de trail do CNPL, aprovou a opção dos filhos, mas esclarece que não sonha com nenhum futuro campeão olímpico lá em casa. "Nem todos podem ser campeões. Espero sobretudo que se divirtam. Se não estivessem aqui estariam provavelmente em casa a ver televisão ou jogar PlayStation. Isto é bem mais saudável."

Diversão no "rio grande"

E é através da diversão, precisamente, que Nuno Morais tenta captar o interesse dos mais pequenos (a partir dos 8 anos, idade mínima), que começam a dar as primeiras pagaiadas nas férias desportivas. "Essa é a prioridade no trabalho com os mais pequeninos, porque os aspetos de segurança estão presentes com todos", explica. O ritual de iniciação é simples. Os petizes começam por ir à água nos "patinhas", as embarcações mais largas e estáveis, e são instruídos com as regras essenciais: "Os cuidados a ter com o material e aquilo que devem fazer quando o barco se vira. Quando percebem isso podemos começar a dar-lhes alguma liberdade. O essencial é estarem à vontade com o barco, com a água e sentirem-se seguros com o colete."

No rio, os mais de 50 que a nossa reportagem apanha nesta tarde quente de agosto já demonstram um extraordinário à-vontade, ao fim de um mês de "aulas". Mas também surgem algumas dificuldades, medos que é preciso ultrapassar. "Por vezes os mais pequeninos veem o tamanho do rio e assustam-se. Temos de fazer algumas atividades lúdicas para se habituarem à água primeiro." Depois, sim, entra em ação a canoagem, "com a coordenação e a técnica-base". Cerca de metade dos miúdos costumam ficar para o ano seguinte, calcula Nuno Morais. "Vêm todos com muita ilusão de ser o novo Fernando Pimenta", sorri.

Francisca Oliveira, de 10 anos, foi uma dessas crianças que tiveram de ultrapassar alguns medos, no ano em que entrou. O rio pode, de facto, parecer "muito grande". Houve uma altura até em que não queria vir mais. A irmã mais velha, que também cá está, foi uma ajuda. Agora, garante, adora: "É giro, faz-se muitos amigos." Remar em caiaques com o dobro do seu tamanho já lhe parece natural, embora admita que "é preciso muita força" e às vezes fica "cansada". Mas já tem algumas recompensas em casa: "Sete medalhas de provas nacionais e regionais."

Nesta "terra de campeões" anunciada pelo medalhado olímpico à entrada, as águas do Lima vão forjando mais craques da canoagem. Como outra Francisca (Carvalho), de 15 anos, que foi já uma das representantes da seleção nacional no recente campeonato do mundo de juniores e sub-23, onde chegou a uma final A. Um talento precoce que desde há um par de anos vai acumulando vitórias sobre raparigas mais velhas, em escalões à frente do seu. E um exemplo de determinação, que não cedeu aos 20 km de distância entre Arcos de Valdevez (onde mora) e Ponte de Lima, percorrida várias vezes por semana, depois das aulas, para poder treinar.

No último ano, Francisca Carvalho viveu na residência universitária da Federação Portuguesa de Canoagem, em Montemor-o--Velho, onde foi a benjamim do grupo e geriu melhor o tempo, entre aulas e estágios. No total, desde que começou na canoagem, aos 9 anos, já colecionou 102 medalhas. Os Jogos Olímpicos são "o sonho", admite, com o olhar carregado de ilusão e a consciência de que "é muito difícil". O Rio 2016 é muito cedo, mas Tóquio 2020 vem já aí. Quem sabe se não será ela o rosto de um próximo cartaz?

Novo açude em marcha para fazer subir as águas

Em frente às modernas instalações do Clube Náutico de Ponte de Lima, junto à Ponte Nova que atravessa o rio, acumulam-se banhistas a aproveitar esta piscina natural. Aqui, o caudal do Lima é tão baixo que se veem pais e crianças a atravessá-lo de uma margem à outra. Mas aquilo que se apresenta agradável para as centenas de veraneantes atraídos pela calma do rio é ao mesmo tempo "um problema" para quem precisa de um bom caudal de água para a prática da canoagem (além de todas as razões ambientais, claro), aponta o presidente do CNPL, Luís Capitolina.

Um pouco mais abaixo, o rio parece transformado num estaleiro. As máquinas não fazem férias na construção de um novo açude que possa ajudar a repor um nível maior nas águas do rio. A obra é há muito considerada essencial.

"A reconstrução do açude e o desassoreamento do rio vão-nos permitir ter um plano de água mais favorável, com um caudal mais alto e mais suave para as embarcações. Nesta altura, por vezes, os atletas de alta competição têm de ir treinar para Darque ou para a barragem do Touvedo", salienta Luís Capitolina, também ele ainda um canoísta nas horas vagas e que, aos 26 anos, é provavelmente o mais novo presidente de um clube de canoagem no país. "Pelo menos dos que conheço, acho que sim", admite o jovem dirigente, que acumula com as funções de técnico de radiologia no Hospital de Braga os dois anos de presidência que leva num clube que se prepara para ser campeão nacional pelo nono ano consecutivo, ganhou todas as Taças de Portugal disputadas até hoje (27) e soma 88 medalhas em competições internacionais, 46 delas em campeonatos da Europa e do mundo.

Com 1200 sócios e um orçamento anual de cerca de 90 mil euros, Luís Capitolina projeta alguns planos que permitam crescer ainda mais o clube mais titulado da última década na canoagem portuguesa. Como um centro de estágios para equipas nacionais e internacionais. Mas isso depende da saúde do rio: "É a nossa grande preocupação, o bem essencial para a nossa atividade."

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