Onda de esquerda na América Latina é na realidade uma "onda opositora"

Com a posse de Lula a 1 de janeiro, a esquerda estará no poder em 12 dos 19 países da região. Mas não como há 20 anos, quando os preços altos das matérias-primas financiaram os programas sociais e tiraram milhões da pobreza.
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A eleição de Lula da Silva para a presidência do Brasil deixa a América Latina praticamente toda na mão de líderes de esquerda (12 dos 19 países, incluindo as cinco maiores economias da região), depois de anos de governos de direita. Mas esta nova onda vermelha, que começou em 2018 com a eleição do mexicano Andrés Manuel López Obrador, não é uma repetição da que se espalhou pelo continente no início do século XXI.

"Não há onda vermelha, há onda opositora", disse ao DN o investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Andrés Malamud, argumentando que a esquerda chega agora ao poder em resposta às políticas de direita num contexto internacional de crise económica. Se nada mudar, e diante das dificuldades de vários dos líderes de esquerda, a alternância pode ocorrer já nas próximas eleições. E qual é a diferença em relação à onda de há 20 anos? "Agora a esquerda tem minoria no congresso e na rua, tornando-se rapidamente impopular", até porque "as condições económicas internacionais são menos favoráveis" do que eram na altura.

Quando os movimentos progressistas começaram a chegar ao poder na América Latina, no início do milénio, faziam-no rejeitando a expansão do neoliberalismo, a velha receita do Consenso de Washington para combater a pobreza na região. Beneficiando do alto preço das matérias-primas, os novos presidentes de esquerda aproveitaram a bonança económica para investir em programas sociais e tirar milhões de pessoas da pobreza.

Agora, chegam ao poder em plena crise económica, sem margem de manobra para repetir a mesma receita. Além disso, as esquerdas não são todas iguais e não parece haver o desejo de procurar uma só voz. "Dialogar sim, integrar não. As esquerdas democráticas, como de Lula ou do chileno Gabriel Boric, estão mais próximas das direitas democráticas, do uruguaio Lacalle Pou ou do paraguaio Mario Abdo Benítez, do que das esquerdas autoritárias, do venezuelano Nicolás Maduro ou do nicaraguense Daniel Ortega", lembra Malamud.

O politólogo peruano Alberto Vergara, da Universidade Pacífica de Lima, disse à BBC Mundo que a esquerda chega ao poder diante de uma direita que não tem um projeto político e não é a mesma do Consenso de Washington. "Nos últimos 10 anos apareceu uma direita mais radical que aquela direita economicista do passado. A preocupação central desta nova direita não é tanto a economia, mas as chamadas batalhas culturais", indicou. E esta pode ter tido o seu auge em Jair Bolsonaro. Da mesma forma, indicou, esta direita andou durante anos a tentar dissuadir os eleitores de votar na esquerda sob a ameaça de que iriam converter os seus países noutra Venezuela, "mas essa tática deixou de funcionar".

Lula é um dos líderes da onda vermelha original, tendo sido eleito presidente à quarta tentativa nas eleições de 2002 com mais de 60% dos votos na segunda volta e reeleito em 2006. Em janeiro de 2023, tomará as rédeas de um Brasil profundamente dividido, após quatro anos de governo de Jair Bolsonaro, tendo vencido por 50,9% e cerca de dois milhões de votos de diferença. Além disso, terá um Congresso de maioria de direita, precisando de fazer alianças não só com o chamado "centrão" mas também com representantes do campo do adversário - podendo Bolsonaro ser uma fonte constante de problemas. A crise económica, com a inflação em torno dos 9% e sem o boom das matérias-primas, significa que não terá capacidade para abrir os cofres do governo como da primeira vez.

Andrés Manuel López Obrador chegou ao poder em dezembro de 2018, após ter ganho as eleições com mais 30 pontos que o adversário, sucedendo ao conservador Luis Peña Nieto. Seria o arranque da nova viragem à esquerda no continente, apesar de a esquerda de AMLO (como é conhecido) ser muito própria. É uma esquerda nacionalista revolucionária, que para muitos nem sequer é esquerda, já que tem aplicado políticas neoliberais e temas que são destacados pela esquerda progressista, seja alterações climáticas, violência doméstica e outros, não parecem interessar. Tem uma popularidade invejável no continente de 56%. O seu mandato é único, de seis anos, e falta ver se consegue eleger um sucessor que continue o legado.

Em 2019, o presidente conservador Maurício Macri falhou a reeleição, com a maioria dos argentinos a culpar as suas políticas liberais pela crise económica que o país atravessava. Este sempre alegou que herdou a situação da antecessora, Cristina Fernández de Kirchner, e do seu governo peronista populista. O sucessor de Macri foi Alberto Fernández, um "peronista moderado" que foi antigo chefe de gabinete de Néstor Kirchner (que fez parte da primeira onda vermelha). A sua vice é precisamente a ex-presidente e viúva de Néstor, Cristina. A relação entre ambos é tensa e contenciosa e ela enfrenta acusações por alegada corrupção. Novas eleições estão marcadas para outubro de 2023, sendo que Alberto Fernández admite não ser candidato se o seu nome for um entrave a uma nova vitória da esquerda.

Nicolás Maduro sucedeu em 2013 ao falecido Hugo Chávez, que estava no poder desde 1999, sendo reeleito em 2018. O resultado dessas presidenciais não foi contudo reconhecido pela União Europeia ou os EUA, por suspeitas de fraude eleitoral, num país onde a oposição foi sendo cada vez mais perseguida e onde a crise económica, política e social se tem vindo a aprofundar. Em janeiro de 2019, o novo presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, autoproclamou-se presidente interino, contando com o apoio de parte da comunidade internacional, mas Maduro resistiu à pressão. Governo e oposição estão de novo em negociações para um acordo social, numa altura e que a guerra na Ucrânia reabriu também o diálogo entre a Venezuela e os EUA - interessados, sem dúvida, naquelas que são as maiores reservas de petróleo do mundo.

Há u ma década, Gabriel Boric era um dos líderes estudantis que estava nas ruas a exigir um novo sistema educativo. Hoje, é presidente - o mais novo de sempre do Chile, com 36 anos - tendo surgido como o novo rosto da esquerda e derrotado, em 2022, um candidato de extrema-direita para se tornar no sucessor do conservador Sebastián Piñera (que terminou o seu segundo mandato em março de 2023). Piñera enfrentou uma revolta social em 2019 e acabou por lançar um processo constituinte para reescrever a Constituição - herdada do ditador Augusto Pinochet. Mas o novo texto, elaborado por uma assembleia dominada pela esquerda e pelos independentes, foi rejeitado como sendo demasiado radical num referendo em setembro. Boric contava com a nova Constituição progressista para implementar as suas políticas, sendo a sua popularidade inferior a 30%.

Os colombianos elegeram pela primeira vez este ano um presidente de esquerda. Gustavo Petro, ex-membro da guerrilha do Movimento 19 de Abril, concorria pela terceira vez, tendo experiência como deputado, senador e presidente da câmara de Bogotá. Sucedeu ao conservador Iván Duque. Nos cem dias de governo, a sua aprovação é de cerca de 50%, apesar de algumas das suas propostas não terem a mesma popularidade - o fim do subsídio à gasolina ou o aumento dos impostos. Os colombianos apoiam contudo o seu conceito de "paz total", com a abertura de negociações de paz com a guerrilha do Exército de Libertação Nacional, num diálogo que inclui também os narcotraficantes.

A situação na Nicarágua é também considerada ditatorial, com o ex-guerrilheiro sandinista Daniel Ortega no poder desde 2007 (já tinha liderado o país de 1979 a 1990). Ortega e a mulher, a vice-presidente Rosario Murillo, transformaram a Nicarágua num Estado de partido único - acabam de conquistar todas as 153 câmaras do país nas eleições municipais. Ortega alterou a Constituição, para permitir mandatos ilimitados, calou ou deteve praticamente toda a oposição e tem o controlo sobre todas os ramos do Estado.

A revolução cubana de 1959 inspirou várias gerações de líderes de esquerda. Em 2018, Miguel-Díaz Canel tornou-se no primeiro presidente sem o apelido Castro - depois do histórico Fidel e do seu irmão Raúl. Na ilha dominada pelo Partido Comunista Cubano, Canel enfrentou os maiores protestos em julho de 2021.

Xiomara Castro chegou à presidência em janeiro, sendo a primeira mulher no cargo nas Honduras. O marido, Manuel Zelaya, esteve no poder entre 2006 e 2009, quando foi deposto num golpe de Estado - os militares derrubaram-no a pedido do Supremo Tribunal pelas suas alegadas violações da Constituição. Xiomara liderou o movimento de resistência, candidatando-se em 2013 e 2017 à presidência com o que chama de "socialismo democrático" antineoliberal. Tem cerca de 62% de popularidade.

Nas eleições de 2021, os peruanos elegeram como presidente Pedro Castillo, um professor de primária e líder sindical marxista, numa disputa com Keiko Fujimori, a filha do ex-presidente autoritário Alberto Fujimori. Mas Castillo enfrenta um Parlamento opositor, tendo já sobrevivido a duas tentativas de impeachment - há já uma terceira em planeamento, por "traição à pátria" -, além de enfrentar seis investigações de corrupção contra si, familiares e aliados políticos.

O ex-ministro das Finanças Luis Arce foi eleito em 2020, num regresso ao poder do Movimento ao Socialismo do ex-presidente Evo Morales. O antigo líder cocalero estava no seu terceiro mandato consecutivo quando, em 2019, renunciou e deixou o país após três semanas de protestos por suspeita de fraude nas eleições, no que vários governos de esquerda da região consideraram um "golpe de Estado". Jeanine Áñez, que lhe sucedeu, foi entretanto acusada de "sedição, terrorismo e conspiração". Arce enfrenta atualmente protestos por causa da data do censo no país - que pode alterar a representação das várias regiões no país e os fundos que recebem. Santa Cruz, bastião da direita, lidera os protestos para antecipar o censo para 2023.

Laurentino Cortizo, no poder desde 2019, tem uma popularidade de apenas 20%. O país tem tido vários protestos sociais contra os cortes económicos aprovados pelo governo. Os dois antigos presidentes, Ricardo Martinelli e Juan Carlos Varela, ambos de direita, enfrentam acusações de corrupção. Cortizo, de 69 anos, foi diagnosticado com um tipo raro de cancro no sangue, estando a ser tratado nos EUA.

susana.f.salvador@dn.pt

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