Omitir ou debater?
Deve ter sido n"O Passeio dos Alegres - um programa apresentado por Júlio Isidro que a minha geração via religiosamente nos anos 1980 - que Herman José, de bibe e com o dedo enfiado no nariz, contou que o Capuchinho Vermelho, desobedecendo à mãe, saiu de casa certo dia para ir levar o almoço à avó e, pelo caminho, lhe apareceu um lobo: pêlo lustroso, olhos azuis, 1,90 m de altura... O Capuchinho rogou-lhe: "Come-me, come-me."
Os contos tradicionais são perfeitos porque têm tudo para se lhes poder dar a volta; mas, no Colégio Tàber de Barcelona, as professoras e as mães talvez preferissem este Capuchinho maluco por sexo ao que é comido pelo lobo contra vontade, pois fizeram desaparecer da sua biblioteca a versão que encanta crianças há séculos, bem como 200 outros títulos que consideraram "tóxicos" e sexistas (incluindo A Bela Adormecida, que tem um beijo não autorizado). Como oportunamente comentou um jornalista do El País, devemos mesmo ficar consternados por não haver paridade na história dos Três Porquinhos? Se fossem Três Porquinhas, alguém se indignaria? O que se pretende mostrar às crianças não é, afinal, que as casas construídas às três pancadas vêm abaixo, independentemente do sexo do construtor? Não será um absurdo querer que os contos tradicionais se ajustem às questões do presente?
Talvez haja quem acredite num mundo de pessoas civilizadas, correctas, todas respeitadoras das minorias e do ambiente. Mas não nos iludamos: tal mundo não existe e as crianças precisam de o saber quanto antes; nesta matéria, aliás, é muito mais perigoso omitir do que debater. Além disso, uma história só com bonzinhos e cumpridores seria a estopada que nenhum miúdo quereria ler; a literatura alimentou-se desde sempre de conflitos entre as personagens e, muitas vezes, são os piores sacanas que nos arrastam ao longo das páginas, nem que seja para os vermos cair no grande final. Por isso, estes desbastes de bibliotecas politicamente correctos são aterradores.
Egas e Becas já vieram assumir-se como casal, Lucky Luke deixou de fumar para poder entrar nos Estados Unidos, James Bond pondera fazer uma desintoxicação de álcool. Queira Deus que as organizações que defendem os direitos dos animais não se lembrem de condenar as fábulas à morte. Qualquer dia ainda proíbem a leitura de Crime e Castigo, de Dostoiévski, com o argumento de que matar uma velha (perdão, idosa) não é atitude que se recomende. Adeus, futuro.
Editora e escritora. Escreve de acordo com a antiga ortografia.