Olhando o sofrimento dos outros

Publicado a
Atualizado a

Albert Camus escreveu que só havia um problema filosófico verdadeiramente sério, e ele era o suicídio. Em A Ponte, estreia de Eric Steel na realização, sondam-se algumas possíveis respostas a esse problema que é ainda tabu nas nossas sociedades alegadamente avançadas. A prová-lo está a enxurrada de vozes demagógicas que condenaram este documentário sobre os suicídios na Ponte Golden Gate (São Francisco), algumas achando talvez que os suicidas não merecem atenção, outras mostrando-se indignadas pelo facto de o filme revelar imagens reais de alguns dos suicídios.

É claro que esta opção levanta questões éticas, mas elas decorrem sobretudo do facto de a morte ser o maior tabu do nosso tempo, nomeadamente a morte auto-infligida, tornada infame pela moral judaico-cristã. Ao terem lugar no espaço público, hoje sujeito a uma lógica de cobertura panóptica, essas mortes estão à vista de todos, tornam-se públicas e colectivas, e as câmaras de Steel mais não são do que espectadores de actos que, afinal, têm até uma certa dimensão exibicionista.

Admitimos que possa haver um certo voyeurismo mórbido no filme, mas só uma profunda hipocrisia moral negaria a evidência: a curiosidade voyeurística faz parte da natureza humana e satisfazê-la não é esse pecado mortal que certas consciências bem-pensantes nos querem fazer crer. De resto, que é o ecrã de cinema mais do que uma janela indiscreta sobre a intimidade dos seres?

O que importa em A Ponte não é tanto discutir a legitimidade moral de algumas das suas imagens, nem sequer a honestidade dos seus processos, pois é sabido que há sempre uma certa "imoralidade" na raiz de muitas das melhores obras de arte. O que convém salientar é que este filme aposta em compreender a natureza do suicídio, revelando histórias marcadas por severas doenças mentais e formas extremas de sofrimento, contribuindo assim para livrar os suicidas dos anátemas que ainda hoje os perseguem. A morbidez do tema é redimida pelo espírito de plácida e poética melancolia que perpassa o filme. Quanto às suas imagens eventualmente chocantes, dir-se-ia que, tendo em conta a letargia moral em que vivemos, incapazes de olhar com olhos de ver o sofrimento dos outros, é um soco no estômago que todos nós, cúmplices da indiferença, merecemos.|

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt