Olha que 'Giro'!

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No dia 4 de maio arrancou a Volta a Itália em bicicleta (o Giro d'Italia) e a primeira etapa foi... Jerusalém. A razão desta excursão fora de portas tem um nome ainda muito popular: Gino Bartali, campeão de ciclismo que Israel declarou "Justo entre as Nações".

Bartali foi um grande ciclista quando o ciclismo era grande, ainda não havia televisão a filmar rebanhos informes de bicicletas cujas evoluções na estrada só os entendidos conseguem interpretar e a transmissão oral da rádio ampliava as empresas dos chefes de rebanhos como num poema homérico de trazer por casa. Mais recentemente, a lenda entrou na história e tornou-se ainda maior, porque se descobriu que, nos anos mais sombrios da guerra e da perseguição racial, Bartali foi estafeta numa rede clandestina liderada por um rabino e um arcebispo, cujo objetivo era salvar judeus. O atleta, fingindo treinar regular e teimosamente enquanto o mundo "lá fora" estoirava, transportou documentos perigosos e salvou a vida a mais de 800 pessoas.

Esta edição do Giro visava portanto homenagear um italiano especial. Infelizmente acabou por levantar uma polémica normal, que reproduziu em ponto pequeno a discussão sobre a mudança da Embaixada dos EUA para Jerusalém. Já no ano passado os organizadores da competição tinham anunciado a etapa de Jerusalém Ocidental, despertando a reação das autoridades israelitas, que recusavam apoiar financeiramente a manifestação se o "Ocidental" não desaparecesse do material informativo. A palavra desapareceu e deu-se por consumada a ocupação pelos israelitas, que desde o fim da Guerra dos Seis Dias, em 1967, controlam também a parte Oriental duma cidade que se encontrava dividida entre árabes e judeus desde 1948.

Naturalmente a submissão do Giro às exigências de Israel levantou mais protestos, desta vez do lado oposto, mas o caso passou quase despercebido fora dos países envolvidos e do mundo das duas rodas. É só um pequeno episódio face ao que a decisão de Trump poderá desencadear a curto e médio prazo, mas é um exemplo de como, no pântano da Palestina, é muito fácil meter a pata (e a roda) na poça. Ao tentar hastear bandeiras sentimentalistas numa terra cujo problema é precisamente a convivência entre demasiadas bandeiras (dos que lá vivem e dos que, estando longe, fazem do conflito a mãe de todas as batalhas virtuais), não resta senão estar preparado para as más figuras. Será bom lembrar-se disso no próximo Festival da Eurovisão.

Voltando à Volta e a Bartali, em Itália todos sabem que tinha um adversário mais novo, Fausto Coppi, e a rivalidade entre os dois foi tão grande que se tornou fenómeno cultural total. Os meus amigos Daniele Coltrinari e Luca Onesti, autores de um livro italiano sobre o ciclismo português, garantem-me que algo muito parecido acontecia por cá com José Maria Nicolau (do Benfica) e Alfredo Trindade (do Sporting), confirmando que há sincretismos para todas as mitologias.

De Coppi e Bartali existe uma fotografia famosa tirada no Tour de France de 1952. Durante uma etapa alpina muito dura, vê-se um dos dois a passar uma garrafa de água ao outro. Mas a foto fixa um instante, e nesse instante não se discerne quem dá e quem recebe. Os campeões de cavalheirismo nunca disseram quem, naquele lance, estava a ser cavalheiro para com o adversário.

Tratando-se de desporto, é fácil deslizar para o terreno do mito. Também ao falar de judeus e palestinianos é difícil não cair no simbolismo sentimentalista que os arqui-inimigos representam há setenta anos, talvez sobretudo agora que os palestinianos parecem contar cada vez menos quer a nível geoestratégico quer como mero pretexto para outras guerras, e o povo sem terra está em vias de substituir, no imaginário, a figura do judeu errante de outrora. Quando a alimentação artificial de causas boas para que todos obtenham consenso ou escândalo baratos pesa no sofrimento real dos povos, eis que se torna casualmente poderosa essa foto de dois corredores que, numa massacrante subida alpina, se entreajudam ignorando os uivos das claques sentadas confortavelmente à sombra.

Jornalista italiano freelance

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