Oito mil em liturgia por Tony Carreira
Depois do concerto, não faltou o 'beija-mão' que o músico nunca recusa
"Mais uma madrugada", primeiras palavras de um refrão, autobiográfico como muitos outros refrões. Passa das duas e meia da manhã e centenas de pessoas perfilam-se para cumprimentar Tony Carreira. Antes, cantaram os parabéns ao irmão mais velho do cantor, José, membro do staff Carreira, e cantam num coro tão afinado quanto permite o cansaço e a ansiedade. Porque se as bocas cantam, os olhos não se desviam do objectivo: a porta do camarim de onde há-de sair o artista. Alguns dos que esperam estão em Ponte de Lima, à porta do recinto que recebe o primeiro festival de música popular, desde as sete da manhã, mas nada os demove de um beijo, um abraço, um aperto de mão apertado. São homens e mulheres de todas as idades, crianças de colo, idosos.
O artista sai e recebe-os um a um, numa fila ordeira comandada pelos seguranças da comitiva que evitam abusos, ou seja, um abraço mais apertado, um beijo mais caloroso. "É outra noite que acaba", como diz o mesmo refrão, a primeira de um festival que teve em Tony Carreira a grande estrela.
Se dúvidas houvesse em relação, bastaria ter acompanhado só um pouco dos bastidores. Tony Carreira chegou tarde. Já Mónica Sintra saíra do palco, cerca das onze da noite, e Ruth Marlene subia as escadas para o segundo concerto sem que nenhuma luz se focasse nela. Os microfones e as câmaras rodeavam o autor de Eterno Vagabundo. Microfones e câmaras desligados, sublinhe-se.
T-shirt azul, jeans e uma postura informal, o artista tentava justificar a razão pela qual não dava entrevistas, não fazia comentários e nem permitia a captura de imagens a não ser nos três primeiros minutos do espectáculo. Nada mais. À sua volta, vigilantes, os seguranças garantiam que ninguém infringisse as regras. Todos também de jeans, também de T-shirts, desta vez pretas se lia "Tony Carreira, a vida que eu escolhi." Frase de canção espécie de mandamento para uma causa maior, lema que o cantor vai repetindo em palco durante a última actuação da primeira noite do festival de Ponte de Lima.
Tony Carreira tenta justificar o que poucos parecem entender, mas ordens são ordens, palavra forte que a comitiva substitui por um "respeitem o pedido", até que o artista, justificado, entra no camarim, onde já se vincam, com vinco bem vincado, as calças que escolheu para ir ao palco.
Enquanto Ruth Marlene canta, Tony Carreira descontrai. Uma descontracção que só a vigilância do staff oprime. Cá fora, feita a escolha da indumentária, conversa, bebe água, fuma um cigarro, ri. Um elemento da produção diz que ele está feliz, que faz 23 anos de casado. A mulher está com ele, tão vigilante quanto o mais dedicado dos seguranças. A azáfama à volta tem agora outros protagonistas; os que zelam para que nada falhe em mais um espectáculo de Tony Carreira, o homem que encheu o Pavilhão Atlântico. Maria José, a assessora de imprensa, é uma das mais solicitadas. Está apostada e que nenhum dos jornalistas fure o zelo e, para lá do palco, a cada pausa de Ruth Marlene, grita-se "Tony, Tony". Tony ouve com a expressão de quem ignora. Sabe que é por ele que espera a maioria das oito mil pessoas que ali estão.
Falta pouco. O artista desaparece e o espaço à volta do camarim esvazia-se. Silencia-se. Só para só se ouvirem as notas de um músico, isolado, sentado num banco, a lançar notas de jazz.
São horas. O homem entra. Fato branco, camisa de um azul brilhante. Sabe que é por ele que todos gritam e por ele que todos se calam até soarem as notas da primeira música. Na primeira fila há mulheres de olhos fechados e mãos em pose de oração; crianças recém-despertas de um sono agitado que batem palmas de olhos esbugalhados; adolescentes de braços no ar. Todos sabem de cor letras que entoam num coro único, ora gritado, outra vezes sussurrado. Se Tony Carreira se calasse, a cantiga continuaria, numa espécie de liturgia que vista de fora é em si mesma um espectáculo, outro espectáculo, como o beija-mão final a que o músico nunca se recusa, "como sempre/ depois da multidão", termina o tal refrão".