Maria Schrader, realizadora de Stefan Zweig: Adeus à Europa (o filme estreou ontem, em Lisboa), foi entrevistada pelo jornal i. Ao falar do demasiado que há de escrito sobre o famoso escritor austríaco, disse que ela e a sua equipa a dado passo tiveram de tomar a decisão de "basearmo-nos em factos históricos". Estranhas palavras, pois se Zweig escreveu ficção, famosos romances (24 Horas da Vida de Uma Mulher, O Jogador de Xadrez...), também foi mestre de biografias, género ligado a factos... Para além de que ele próprio tem a vida bem conhecida e contada, foi protagonista de várias biografias - uma delas sendo a admirável Morte no Paraíso, do jornalista brasileiro Alberto Dines -, já para não falar da troca de cartas que manteve toda a sua vida com importantes intelectuais da primeira metade do século passado. A que "factos históricos" se referia Maria Schrader?.Fiquei encantado com o que fiquei a saber na resposta seguinte. Cláudia Sobral, a jornalista do i, tendo-lhe perguntado por que o filme foi feito em São Tomé em vez do Brasil, onde Zweig acabou a vida, Maria Schrader explicou a escolha. A casa de Petrópolis, paraíso nos arredores do Rio, que Stefan Zweig e a sua mulher Lotte tinham escolhido como morada, já não podia servir de cenário por estar invadida pelos modernos edifícios vizinhos. Daí, a troca pela ilha equatorial, onde se poderia encontrar igual arquitetura colonial portuguesa, feita para se casar com a mesma floresta luxuriante. Os "factos históricos" eram, afinal, os muros, as telhas, as colunatas de varanda, um certo ar luso-tropical... A realizadora alemã, por razões práticas, prestou uma homenagem, talvez involuntária, ao protagonista do seu filme..Zweig conhecia Portugal e a sua História, é autor de uma biografia sobre Fernão de Magalhães e outra sobre Américo Vespúcio, o navegador italiano ao serviço dos portugueses durante os Descobrimentos (e que, apesar de descobertas modestas, teve a fortuna de batizar com o seu nome os novos continentes, as Américas). Vespúcio tem uma frase, "se algures na Terra existe o Paraíso, não pode estar longe daqui", que Zweig vai citar na sua famosa obra Brasil, País do Futuro. O escritor perdera a pátria e até o passaporte, exilara-se no novo país e no título do livro prestava homenagem ao otimismo e dinamismo brasileiro..Mas ele era do passado, judeu errante ("em toda a parte sou estrangeiro e, na melhor das hipóteses, hóspede", escreveu), viera da Viena imperial e culta que foi morta pela I Guerra Mundial e enterrada, vinte anos depois, pela ocupação nazi. O filme, porque o título é Stefan Zweig: Adeus à Europa, só podia contar a história de um Zweig em agonia, apesar do sobressalto de esperança que indiciava o livro que escreveu sobre o Brasil. Com Lotte, foi viver em Petrópolis, talvez pela ressonância imperial que a cidadezinha tinha (D. Pedro II fizera lá a sua residência de verão), mas ele não tinha ilusões. Um dia, mandou ao editor o seu último livro, O Mundo de Ontem. Por mais que prognosticasse para os hóspedes futuro, o que lhe interessava, a ele, era o ontem. Livro enviado, no dia seguinte, uma tarde de 1942, deixou um bilhete: "Aos meus amigos, que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite. Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes." Ele e a mulher tomaram barbitúricos. Pendurado na parede do quarto, um quadro com estes versos de Camões: "Onde acolher-se um fraco humano?/ Onde terá segura a curta vida...".O derradeiro livro era sobre o passado acabado, O Mundo de Ontem, o filme é sobre a despedida a um mundo perdido, Stefan Zweig: Adeus à Europa, mas eu quero trazer para aqui o pedaço da entrevista que já citei, por ele transportar-nos para um reencontro. Filme, pois, feito numa roça santomense que interpreta o papel de uma cidadezinha brasileira... Verdade seja, se a realizadora alemã tivesse caprichado na escolha do elenco, teria por onde escolher. Talvez uma vivenda em Goa ou na macaense Coloane, um sobrado no Dondo angolano, uma casa zambeziana em Quelimane, ou, se insistisse mesmo na opção brasileira, um casarão em São Luís do Maranhão, que ainda os há sem terem por perto vidraças fumadas. Um dia, talvez isso tudo já seja pó - e, aí está prova de que a arte é salvadora - mas uma cópia do filme de Maria Schrader espicaçará a curiosidade: que raio de fio condutor uniu São Tomé a Petrópolis?.Talvez alguém seguindo-o, a esse fio, pela invocação de uma realizadora alemã e a pretexto de um grande e infeliz vienense, chegue a Almada Negreiros, passe para a fazenda do padre Correia (procurem...), salte do cacau para o Caminho do Ouro... Repito, a arte é prenhe e dadivosa. A ilustrar o artigo do jornal i, um plano do filme: o ator alemão que faz de Zweig, numa varanda de Petrópolis, perdão, São Tomé, sentado em cadeira de verga, de pernas cruzadas. Eu sei onde se bebeu a imagem. A 5 de fevereiro de 1936, Stefan Zweig, com três semanas de incógnito em Portugal, é descoberto pelo DN e fotografado no jardim do hotel Atlântico no Estoril, pelo nosso camarada Ferreira da Cunha. Em cadeira de verga, elegante, fato tropical, pernas cruzadas, expondo uns sapatos de duas cores, negro e branco, uns spectator shoes, como chamam os americanos a estes sapatos de artistas - e que infelizmente a produção do filme não soube encontrar....Não, não peço royalties para o meu jornal. Muito pelo contrário, agradeço esta homenagem a Portugal, ao tal fio condutor de toda esta história.