Odete Santos (1941-2023): "Só com rebeldia não se chega lá"

Morreu, aos 82 anos, a principal protagonista na Assembleia da República da luta de 25 anos pela despenalização do aborto.
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Teatral, espalhafatosa, excessiva, um talento tribunício no Parlamento como raramente se viu (fazendo lembrar às vezes a sua amiga Natália Correia), autêntica, militante comunista dos pés à cabeça, combativa, advogada empenhada (muitas vezes defendendo gratuitamente clientes pobres da terra onde viveu desde a juventude até morrer, Setúbal).

Tão excessiva era, nomeadamente na defesa de uma das causas da sua vida que foi a da despenalização do aborto, que um dia Álvaro Cunhal a chamou à sede do PCP para lhe dizer que "falava demasiado da Igreja" - sendo que, evidentemente, não falava demasiado para dizer bem, muito pelo contrário.

Citaçãocitacao"Só com rebeldia não se chega lá. Percebi que é importante respeitar as regras, com o pensamento mais frio que caracterizava Álvaro Cunhal, conseguindo refrear ânimos mais repentistas."

Em 2013, quando o PCP celebrava o centenário do nascimento do seu líder histórico, Odete Santos contou ao DN a história dessa conversa. Cunhal, no essencial, segundo relatou, "não gostava de afrontar os católicos" e pediu-lhe algum resguardo nas suas intervenções públicas. Já lhe tinha autografado um livro com um recado: "Para a Odete Santos, rebelde quanto baste". "Tenho procurado seguir o conselho que ele me deu naquela dedicatória. Tinha muita razão, porque só com rebeldia não se chega lá. Percebi que é importante respeitar as regras, com o pensamento mais frio que caracterizava Álvaro Cunhal, conseguindo refrear ânimos mais repentistas", contou.

Odete Santos morreu ontem, aos 82 anos, no Hospital de Setúbal, onde estava internada há alguns dias. A notícia foi avançada pelo PCP, numa nota onde o Secretariado do Comité Central deu conta do seu "profundo pesar".

Citaçãocitacao"É de particular significado a sua intervenção na conquista de novos direitos para as mulheres, nomeadamente o combate ao aborto clandestino e pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez."

No mesmo texto, os comunistas recordaram diversos passos da sua vida, sublinhando tanto o seu amor ao teatro (que incluiu participar como atriz em muitas peças, nomeadamente no teatro de revista no Parque Mayer, em 2004 e 2005) e à literatura ("nas ruas de Setúbal disse poesia de Bocage"), como o essencial do que a tornou mais conhecida dos portugueses, a sua atividade como parlamentar: foi deputada durante quase 30 anos e "destacou-se em áreas dos Direitos, Liberdades e Garantias", ou seja, "na defesa dos direitos dos trabalhadores e dos direitos das mulheres, assuntos que abordou em conferências, debates, entrevistas e artigos publicados".

O empenho de Odete Santos na batalha pela despenalização do aborto não foi evidentemente esquecido: "É de particular significado a sua intervenção na conquista de novos direitos para as mulheres, nomeadamente o combate ao aborto clandestino e pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez [IVG]", causa "de que foi principal rosto na Assembleia da República".

Foi-o, de facto, numa luta iniciada em fevereiro de 1982 (quando subscreve o primeiro projeto do PCP) e que se prolongou, durante cerca de 25 anos, de derrota em derrota até à sua vitória final, em 2007, quando finalmente a IVG é despenalizada, na sequência de um segundo referendo onde o "sim" vence (depois de um primeiro, em 1998, onde a vitória tinha sido do "não").

O referendo do "sim" vitorioso realizou-se em 11 de fevereiro de 2007 e logo em abril seguinte, numa decisão que qualificou de "racional" (sentia-se cansada), encerrou a sua vida parlamentar: "Não é uma morte política, quero continuar ativa, embora de outra maneira", garantia então.

O funeral será esta quinta-feira, às 15h30, no cemitério de Nossa Senhora da Piedade, em Setúbal.

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