Odemira, a noite do nosso descontentamento

Publicado a
Atualizado a

Durante a madrugada de quinta-feira foram instalados, no Zmar, em Odemira, 21 imigrantes que trabalham nas explorações agrícolas locais. Transportados para o empreendimento numa camioneta de carreira, a sua entrada foi aparatosamente escoltada por uma unidade de intervenção da GNR, acompanhada de cães-polícias.

Lemos a notícia e pensámos na Noite de Cristal na Alemanha nazi em 1938, em que foram incendiados estabelecimentos de judeus e estes foram agredidos e levados em grande número para campos de concentração. Lembrámo-nos do que nos contaram acontecer, por vezes, na Guiné-Bissau: a hora que antecede o nascer do Sol é aquela em que com maior frequência são praticados homicídios. A vítima dorme, e quem poderia testemunhar o ocorrido também o faz. O lusco-fusco é a hora de todas as possibilidades, a melhor de todas as horas para ofender os direitos fundamentais dos seres humanos. O silêncio e a quase escuridão da noite que quase tudo encobrem e escondem.

Não é indiferente, para o direito a hora em que são praticados determinados atos. A Constituição da República Portuguesa estipula que só a título excecional pode a inviolabilidade do domicílio de qualquer pessoa ser quebrada durante a noite. O que terá levado as autoridades em Odemira a optar por instalar os trabalhadores migrantes no Zmar pelas quatro da manhã do passado dia 6?

Hipótese 1: os trabalhadores são noctívagos e sofrem de insónias. As autoridades adaptaram-se ao seu biorritmo e, para lhes serem agradáveis, agendaram a transferência para a referida hora e trouxeram os cães por serem animais amistosos e inteligentes, que ajudariam a assegurar o bom acolhimento dos trabalhadores no resort. Questão: seria necessário, para o efeito, ofender o direito ao repouso e ao descanso e ao silêncio dos residentes permanentes do Zmar, perturbando-lhes o sono?

Hipótese 2: os residentes habituais do Zmar oferecem níveis de perigosidade elevados, tornando necessário garantir a proteção dos trabalhadores migrantes para assegurar a sua pacífica instalação no Zmar. Nada indicia que tal corresponda à realidade, o Zmar não é, de todo, o Bairro J de Odemira. Causou, sim, dano moral aos moradores do resort serem acordados a meio da noite por uma intervenção policial armada. De repente, estremunhados, terão talvez pensado que se teriam esquecido de desligar a TV, programada em loop num filme de ação americano?

Hipótese 3: os trabalhadores migrantes a instalar apresentam níveis de perigosidade que justificam a proteção policial dos residentes no processo de se instalarem no resort. Nada, nos factos até agora descritos na comunicação social, confirma esta hipótese, que seria profundamente discriminatória, racista, xenófoba e inadmissível num país que se diz democrático e de um Estado que se proclama de direito

Talvez a hipótese mais provável seja a de as autoridades pretenderem que não exista cobertura noticiosa da transferência, atenta a hora escolhida para a realizar. Mas então onde fica o respeito pela liberdade de informação? Se a requisição civil foi feita no interesse público, por que razão não foi um dos mais importantes atos em que se concretizou realizado, por exemplo, às cinco horas da tarde, em ponto, como no poema de García Lorca?

Que implicações teve esta transferência noturna de migrantes, pelo seu simbolismo negativo, na qualidade ética da nossa democracia? A apenas alguns dias das comemorações oficiais do 25 de Abril, talvez seja de perguntar se foram estes os valores defendidos pelos Capitães de Abril. Odemira não é terra de cravos (a não ser, talvez, os cultivados artificialmente nas estufas) nem de escravos. É terra de rosmaninho e alecrim. É terra da liberdade, da Liberdade que permitiu esquecer, ou tentar esquecer, nos últimos 45 anos, as intoleráveis ofensas à inviolabilidade do domicílio daqueles que pensavam de forma diferente, feitas por uma polícia política de má memória. Democracia significa, antes de mais, clareza e respeito pelos direitos fundamentais de todos os que se encontram Portugal, migrantes ou residentes. Significa confiança num Estado que não age a coberto do escuro da noite.

Teresa Pizarro Beleza é professora catedrática de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Helena Pereira de Melo é professora associada de Direito da Saúde e Bioética da FDUNL

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt