Odeio-te. Vens à minha festa?

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Caro leitor, eu acho que você devia estar na cadeia. Mas como, entretanto, está livre, gostaria de convidá-lo para a minha maravilhosa festa. Venha, traga todos os seus amigos e participe da selfie que tirarei no final para mostrar quão popular sou.

O que o leitor faria se recebesse um convite assim? Provavelmente rasgava-o, como fez o destinatário de uma convocatória semelhante na política brasileira, dia 12 de setembro.

Nessa tarde, o Movimento Brasil Livre (MBL), o mesmo que se gaba de ter enchido as ruas em 2015 e 2016 e ajudado ao impeachment de Dilma Rousseff, fez manifestações em 16 capitais do país a pedir, desta vez, a destituição de Jair Bolsonaro.

Na sua esmagadora maioria eleitores do hoje presidente em 2018, os membros do MBL ainda têm visões em comum com o governo na economia - estado mínimo num país com 27 milhões abaixo da linha da pobreza - e no comportamento - ajudaram a cancelar exposição sobre diversidade em Porto Alegre e censuraram peça em Belo Horizonte por suposta blasfémia.

Porém, uns mais cedo, outros mais tarde, perceberam o nível aterrador de incompetência de Bolsonaro e começaram a pular de um barco cheio de rachaduras e rachadinhas. Hoje, eles querem dar impulso ao que a imprensa chama de "terceira via", uma candidatura entre Bolsonaro e Lula da Silva.

Assustados com eventual fiasco dos seus atos por comparação com as manifestações de 7 de setembro, às quais responderam boa parte dos 25% de brasileiros que por estupidez, falta de caráter ou acúmulo das duas ainda apoia Bolsonaro, chamaram Lula e as esquerdas, os destinatários do convite do primeiro parágrafo, para compor a selfie sob o argumento de que todos os que defendem o impeachment se devem unir.

E chamaram-nos mesmo depois de, dias antes, andarem a vender t-shirts de promoção do ato com a frase "nem Bolsonaro, nem Lula", insistindo na lengalenga de que o atual presidente, de extrema-direita, e o presidente que até governou bastante ao centro entre 2003 e 2010 são polos opostos.

Na Avenida Paulista, os (poucos) milhares de pessoas presentes ouviram pré-candidatos a carregar a tocha da "terceira via". Discursaram João Amôedo, quinto mais votado em 2018 pelo ultraliberal Partido Novo e um dos mais entusiastas defensores do "nem Bolsonaro, nem Lula", Luiz Henrique Mandetta, o ex-ministro da Saúde de Bolsonaro que só se apercebeu da boçalidade do presidente já a covid-19 andava a matar brasileiros, João Doria, o governador de São Paulo que em 2018 apelava ao voto BolsoDoria (Bolsonaro para presidente e Doria para o governo estadual), e Ciro Gomes, o mesmo que na segunda volta daquela eleição preferiu viajar para Paris a orientar os seus 13 milhões de eleitores a votarem em Fernando Haddad.

Na manif do MBL, que se poderia chamar "festa do Mea Culpa", foi sentida a falta, entretanto, de Sergio Moro, o ex-ministro da justiça que saiu do governo a acusar Bolsonaro de falsidade ideológica, coação, prevaricação, obstrução de justiça e corrupção passiva. O mesmo Moro que, atuando como advogado de acusação e juiz em simultâneo, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, condenou Lula a nove anos, numa decisão aplaudida até hoje pelos mesmos organizadores do evento que queriam agora o antigo presidente a prestigiar a sua selfie.

No dia 2 de outubro, é a vez do PT de Lula encabeçar manifestações Brasil afora contra a catástrofe Bolsonaro. Nelas, o MBL, Amoêdo, Mandetta, Doria e Ciro terão boa oportunidade de demonstrar que defendem, de facto, unidade pelo impeachment.

Jornalista, correspondente em São Paulo

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