Obstáculos ao desenvolvimento da ciência

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1 No nosso país tornou-se consensual o reconhecimento da importância do investimento em ciência nos últimos 20 anos. A formação avançada de recursos humanos, a institucionalização, o reforço e internacionalização das unidades de investigação, bem como o apoio continuado e regular a projetos de investigação permitiram dimensionar o sistema científico e, simultaneamente, gerar impactos positivos em domínios como os da saúde (diagnóstico, tratamento e prevenção), do ensino superior (qualificação de quadros técnicos para as empresas e a administração pública) e da inovação empresarial.

2 É menor o consenso no que respeita ao futuro. Nos tempos da troika, fizeram caminho duas "velhas" ideias acerca das políticas de ciência. Por um lado, a ideia de que o sistema científico português cresceu demasiado, em recursos humanos e financeiros, sendo agora necessárias políticas muito seletivas. Com base nesta ideia desenvolveu-se a teoria da "tesoura de podar": o sistema científico seria uma árvore cujos ramos excedentários precisariam de ser cortados e deitados ao lixo. Por outro lado, a ideia de que não são necessárias todas as áreas disciplinares, designadamente as ciências básicas e fundamentais, interessando sobretudo o conhecimento aplicado utilizável pelas empresas. Com base nesta ideia desenvolveu-se a teoria do "conhecimento útil": a política científica deve financiar, sobretudo, os projetos de investigação promovidos pelas empresas ou alinhados com prioridades politicamente definidas.

3 Tais ideias tiveram uma influência decisiva no desenho das políticas de ciência do governo de Passos Coelho. Assistimos, por isso, entre 2011 e 2015, à redução dos programas de formação e de emprego científico e ao êxodo de milhares de investigadores jovens. Assistimos à exclusão do financiamento de um terço dos centros de investigação. Assistimos à concentração de recursos financeiros públicos num número reduzido de instituições privadas e testemunhámos, com perplexidade, a manipulação da avaliação para a promoção de tal política.

4 Aquelas ideias influenciaram também o desenho dos fundos europeus (PT 2020), traduzindo-se na subordinação dos programas de apoio à investigação científica às lógicas da economia. A subordinação exprime-se, em primeiro lugar, na repartição de recursos financeiros disponíveis: um terço para o financiamento das atividades de investigação promovidas por unidades do sistema público e dois terços para financiamento das atividades de investigação promovidas pelas empresas. Esta repartição, que dá prioridade e destina mais recursos às empresas, corre o risco de falhar por defeito, subfinanciando o sistema científico, e por excesso, reservando recursos que estão muito para além da capacidade de execução das empresas.

5 A subordinação exprime-se também nos procedimentos burocrático-administrativos exigidos em sede de candidatura e de avaliação de projetos. O esforço necessário à promoção de candidaturas ao PT 2020, medido em horas de trabalho/investigador, passou de dez para 50 horas por projeto. Os formulários, originalmente concebidos para os apoios públicos às empresas, impõem à ciência uma lógica burocrática incompatível com o funcionamento das unidades de investigação. Impõem à ciência, para financiamento de projetos com um valor máximo de cem mil euros/ano, formulários iguais aos que envolvem financiamentos superiores a um milhão de euros. A complexidade é de tal ordem que as unidades de investigação passaram a necessitar, tal como as empresas, de consultores profissionais para descodificar o jargão e as lógicas burocráticas de gestão dos fundos comunitários. A necessidade de consultores para mediar a relação das instituições com a administração, gerada pela máquina de gestão dos fundos, chegou a tal ponto que temos agora um movimento corporativo dos consultores a reivindicar, junto do Estado, reconhecimento e certificação da sua atividade (ver o Expresso de 12 de agosto).

6 À complexidade das candidaturas acresce a tramitação labiríntica do processo de avaliação e de decisão. Os projetos de investigação são agora pré-avaliados em função do seu alinhamento com uma designada "estratégia de especialização inteligente". Como tal estratégia nada tem de objetivo, deixa margem para toda a espécie de arbitrariedades por parte de quem faz tal avaliação (e que não é cientista). Aparentemente, no que respeita a procedimentos de avaliação, a máquina de gestão dos fundos fez tábua rasa da experiência da ex-Agência de Inovação e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, introduzindo no sistema científico um ruído desnecessário gerador de atrasos insuportáveis.

7 O atual governo corrigiu a orientação da política científica. Porém, a correção será inconsequente se não forem redesenhados os instrumentos necessários à sua concretização. A reprogramação do PT 2020 e os trabalhos preparatórios do PT 2030 serão, certamente, uma oportunidade para resolver, pelo menos em parte, as dificuldades de hoje.

Portugal já investe demais em ciência?

Não, como se vê pelo gráfico. Estamos ainda muito abaixo da média da União Europeia e apenas ligeiramente acima do patamar dos antigos estados do Leste.

É falsa a ideia de que o país enfrenta uma escolha entre ciência e economia, pelo que os recursos da ciência deveriam ser canalizados para objetivos de natureza económica. Ou, numa formulação equivalente, que os investimentos em ciência deveriam depender da sua utilidade económica. Na minha opinião, esta é uma escolha falsa. Desistir de investir em ciência, por impaciência com a utilização dos seus resultados, colocará em risco o futuro da ciência e da economia. A prazo não teremos nem ciência nem uma economia modernizada.

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