Uma reportagem recente no The N ew York Times nos dá minuciosas notícias a respeito de um objeto sobre o qual nunca pensamos - nem mesmo aqueles de nós que levamos a vida ao som da grande música popular produzida nos Estados Unidos entre, digamos, 1930 e 1960. Refiro-me ao piano do compositor Cole Porter (1897-1964). Mais exatamente, o seu piano de Nova Iorque, instalado no 33.º andar do hotel Waldorf Astoria, onde ele tinha apartamento fixo (n.º 33-A) e morava durante boa parte do ano - outra parte, levava viajando pelo mundo, escoltado por seus amigos, tão ricos quanto ele, e usando os pianos dos hotéis em que se hospedava. A Hollywood, onde se faziam os filmes baseados em sua música, ele só ia a trabalho, claro..E o que o seu piano do Waldorf Astoria tem de especial? Bem, trata-se de um sólido Steinway de cauda, com quase três metros de comprimento, fabricado em 1907. Mas, mais importante, pode ter sido nele que, de 1935 até sua morte, quando morou lá, Cole compôs Just One of those Things, I've Got You under My Skin, Easy to Love, Every Time We Say Goodbye, Begin the Beguine, It's De-lovely, My Heart Belongs to Daddy, I Concentrate in You, It's all Right with Me, C'Est Magnifique, I Love Paris, All of You, You're Sensational, True Love, I Love You, Samantha e outras duzentas canções fundamentais para a cultura do século XX e dos seguintes. Somente esses títulos já seriam capazes de tornar esse piano um objeto tão importante quanto as penas com que Flaubert escreveu Madame Bovary ou os pincéis com que Van Gogh pintou a sua Noite Estrelada. Mas, afinal, o que está acontecendo com este piano?.Segundo o Times, após a morte de Cole, o piano foi transferido para o lóbi do Waldorf, onde, em mãos hábeis, continuou prestando serviços à sensibilidade humana, tocando música de fundo e embelezando a vida dos hóspedes que o escutassem mesmo de passagem. Há algumas semanas, o Waldorf, recém-comprado pelos chineses, fechou para reformas (só reabrirá em 2021), e os novos proprietários aproveitaram para mandar o piano de volta para o seu berço natal - a fábrica da Steinway, agora em Astoria, Queens -, a fim de ser desmontado (peça por peça, tecla por tecla, martelo por martelo), lubrificado, polido, reforçado, reafinado e, dentro de dois ou três anos, remontado e posto para tocar de novo. É a primeira vez que as suas entranhas passam por esse tratamento em 110 anos de existência..Mas o que me interessa nessa história é o seguinte. Este é o piano de Cole Porter e sabemos onde ele está. Mas onde estarão as penas de Flaubert e os pincéis de Van Gogh? As partituras originais de Chopin? Os cinzéis de Michelangelo? As toucas de dormir da rainha Vitória? E os manuscritos de Os Maias, de Eça, com as pontas retorcidas por terem sido tocadas com os dedos que ele lambia antes de virá-las? E a primeira lâmpada que Thomas Edison conseguiu acender, em 1878? E um protótipo da lâmina de barbear por King Gillette, em 1901? E as sapatilhas de Isadora Duncan? (Raríssimas, já que ela dançava descalça.).Onde poderemos encontrar um chapelão do líder mexicano Pancho Villa? Um fio do bigode de Alice B. Toklas, companheira de Gertrude Stein? Um colarinho de Leon Trotsky? Um par de óculos de Jean-Paul Sartre? O sax-alto de plástico com que, dizem, Charlie Parker tocou certa vez e pôs a casa abaixo? Pelo menos a ponta de um dos milhões de cigarros fumados por Humphrey Bogart ou Bette Davis em seus filmes? O chicotinho que o cineasta alemão Fritz Lang usava no lombo de seus atores menos aptos? As botas com que Garrincha destruiu a URSS e surgiu para o futebol mundial na Copa do Mundo de 1958? A carabina de dois canos com que Ernest Hemingway se matou em 1961? As luvas com que Muhammad Ali recuperou o título mundial dos pesados ao derrotar de George Foreman em 1974? A rede em que Dorival Caymmi passava o dia deitado na sala do seu apartamento em Copacabana, compondo canções maravilhosas que nunca completava? Etc., etc., etc. Qualquer um desses objetos, se encontrado, deve conter um mundo..O problema é que, uma vez começada, a busca à memorabilia não tem fim. Acabo de ler na reportagem do The New York Times que Cole Porter tinha, não um, mas dois pianos de cauda em seu apartamento no Waldorf. E onde terá ido parar o segundo?.Jornalista e escritor, autor de, entre outros, Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova" (Tinta-da-China).
Uma reportagem recente no The N ew York Times nos dá minuciosas notícias a respeito de um objeto sobre o qual nunca pensamos - nem mesmo aqueles de nós que levamos a vida ao som da grande música popular produzida nos Estados Unidos entre, digamos, 1930 e 1960. Refiro-me ao piano do compositor Cole Porter (1897-1964). Mais exatamente, o seu piano de Nova Iorque, instalado no 33.º andar do hotel Waldorf Astoria, onde ele tinha apartamento fixo (n.º 33-A) e morava durante boa parte do ano - outra parte, levava viajando pelo mundo, escoltado por seus amigos, tão ricos quanto ele, e usando os pianos dos hotéis em que se hospedava. A Hollywood, onde se faziam os filmes baseados em sua música, ele só ia a trabalho, claro..E o que o seu piano do Waldorf Astoria tem de especial? Bem, trata-se de um sólido Steinway de cauda, com quase três metros de comprimento, fabricado em 1907. Mas, mais importante, pode ter sido nele que, de 1935 até sua morte, quando morou lá, Cole compôs Just One of those Things, I've Got You under My Skin, Easy to Love, Every Time We Say Goodbye, Begin the Beguine, It's De-lovely, My Heart Belongs to Daddy, I Concentrate in You, It's all Right with Me, C'Est Magnifique, I Love Paris, All of You, You're Sensational, True Love, I Love You, Samantha e outras duzentas canções fundamentais para a cultura do século XX e dos seguintes. Somente esses títulos já seriam capazes de tornar esse piano um objeto tão importante quanto as penas com que Flaubert escreveu Madame Bovary ou os pincéis com que Van Gogh pintou a sua Noite Estrelada. Mas, afinal, o que está acontecendo com este piano?.Segundo o Times, após a morte de Cole, o piano foi transferido para o lóbi do Waldorf, onde, em mãos hábeis, continuou prestando serviços à sensibilidade humana, tocando música de fundo e embelezando a vida dos hóspedes que o escutassem mesmo de passagem. Há algumas semanas, o Waldorf, recém-comprado pelos chineses, fechou para reformas (só reabrirá em 2021), e os novos proprietários aproveitaram para mandar o piano de volta para o seu berço natal - a fábrica da Steinway, agora em Astoria, Queens -, a fim de ser desmontado (peça por peça, tecla por tecla, martelo por martelo), lubrificado, polido, reforçado, reafinado e, dentro de dois ou três anos, remontado e posto para tocar de novo. É a primeira vez que as suas entranhas passam por esse tratamento em 110 anos de existência..Mas o que me interessa nessa história é o seguinte. Este é o piano de Cole Porter e sabemos onde ele está. Mas onde estarão as penas de Flaubert e os pincéis de Van Gogh? As partituras originais de Chopin? Os cinzéis de Michelangelo? As toucas de dormir da rainha Vitória? E os manuscritos de Os Maias, de Eça, com as pontas retorcidas por terem sido tocadas com os dedos que ele lambia antes de virá-las? E a primeira lâmpada que Thomas Edison conseguiu acender, em 1878? E um protótipo da lâmina de barbear por King Gillette, em 1901? E as sapatilhas de Isadora Duncan? (Raríssimas, já que ela dançava descalça.).Onde poderemos encontrar um chapelão do líder mexicano Pancho Villa? Um fio do bigode de Alice B. Toklas, companheira de Gertrude Stein? Um colarinho de Leon Trotsky? Um par de óculos de Jean-Paul Sartre? O sax-alto de plástico com que, dizem, Charlie Parker tocou certa vez e pôs a casa abaixo? Pelo menos a ponta de um dos milhões de cigarros fumados por Humphrey Bogart ou Bette Davis em seus filmes? O chicotinho que o cineasta alemão Fritz Lang usava no lombo de seus atores menos aptos? As botas com que Garrincha destruiu a URSS e surgiu para o futebol mundial na Copa do Mundo de 1958? A carabina de dois canos com que Ernest Hemingway se matou em 1961? As luvas com que Muhammad Ali recuperou o título mundial dos pesados ao derrotar de George Foreman em 1974? A rede em que Dorival Caymmi passava o dia deitado na sala do seu apartamento em Copacabana, compondo canções maravilhosas que nunca completava? Etc., etc., etc. Qualquer um desses objetos, se encontrado, deve conter um mundo..O problema é que, uma vez começada, a busca à memorabilia não tem fim. Acabo de ler na reportagem do The New York Times que Cole Porter tinha, não um, mas dois pianos de cauda em seu apartamento no Waldorf. E onde terá ido parar o segundo?.Jornalista e escritor, autor de, entre outros, Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova" (Tinta-da-China).