O xadrezista no tabuleiro da vida
A primeira acção do movimento Solidarnost (Solidariedade), formado na Rússia no fim-de-semana passado, foi uma manifestação em Moscovo que ditou a detenção de mais de uma centena de pessoas. O protesto contra as políticas do Presidente Dmitri Medvedev e do primeiro-ministro Vladimir Putin serviu como barómetro do grau de tolerância actual do Governo russo para com a oposição.
O Solidarnost agrupa vários movimentos opositores do regime russo, entre eles a União das Forças de Direita, o ilegalizado Partido Nacional Bolchevique (PNB), os apoiantes do antigo primeiro-ministro Mikhail Kasianov, defensores dos direitos humanos, e a Frente Cívica Unida, de Garry Kasparov.
O antigo campeão mundial de xadrez tentou no ano passado candidatar-se à Presidência da Rússia contra Medvedev, mas veio a desistir. Através do Solidarnost, que procura emular o sucesso do movimento sindicalista de Walesa no derrube do regime comunista polaco nos anos 80, Kasparov pretende agora criar uma força política forte para "desmantelar o regime de Putin".
Aplicando as regras do xadrez à realidade russa, Kasparov adoptou uma estratégia de xeque-mate a longo prazo em que o sacrifício é inerente à vitória final: "É impossível reformar este regime. O nosso fito é desmantelar o regime de Putin, único modo de restabelecer a liberdade e a competência política no país", disse.
A julgar pela reacção das autoridades russas ao movimento opositor, Kasparov terá de esperar muitos sacrifícios. Roman Dobrokhotov, um dos rostos do movimento, foi detido, e antes já tinha sido despedido do seu emprego, alegadamente por redução de pessoal. Também Eduard Limonov, líder do PNB, foi levado pelas autoridades. A manifestação nem sequer se chegou a realizar.
Kasparov tem um livro, How Life Imitates Chess, em que transforma em ajuda no processo de tomada de decisão algumas lições obtidas no mundo do xadrez. "Seja qual for a situação, seja qual for o oponente, Kasparov ensina os leitores a combinar a força da análise e do instinto de que um jogador de xadrez de sucesso - e homem de negócios - precisa para usar contra um opositor hábil", lê-se no texto de promoção da obra na Net.
Garry Kimovich Kasparov nasceu em 1963 na capital do Azerbaijão, então uma república soviética. Teve outro nome à nascença, Gary Weinstein, mas mudou-o depois da morte do pai num acidente de carro, tinha sete anos. Kasparov é a versão "russificada" do apelido de solteira da mãe, Kasparian. A sua educação é a do xadrez. Descoberta cedo a vocação, entrou para a Escola de Xadrez Botvinnik aos dez anos e tornou-se, em 1975, o mais jovem vencedor do campeonato júnior da Rússia. Aos 16 foi o melhor júnior do mundo e aos 17 recebeu o título de grande mestre.
As suas partidas contra Anatoly Karpov ficaram lendárias e começaram com uma disputa de seis meses que acabou em nada - a federação marcou nova data. Kasparov tinha 21 anos, Karpov, 33, e dominava o xadrez desde que Bobby Fischer (EUA) fora destituído do seu título em 75. Em 86, Kasparov ganhou numa final cujo resultado nunca foi aceite por Karpov. A dada altura os dois ostentaram o título de campeão do mundo.
Para quem olhava de fora, em tempo de Gorbatchev, perestroika e dos ventos do fim de uma era, essas partidas de xadrez representavam o combate entre o passado e o futuro: Karpov como o campeão dos soviéticos, Kasparov como o campeão da Rússia democrática.