O 'wayang' do CDS

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Em Java, no teatro de sombras wayang, o marionetista, através da hábil manipulação da luz e dos bonecos, cria uma ilusão que se confunde com a realidade. Porém, a ilusão somente se conserva enquanto a audiência se abstrai da manipulação do marionetista. Quando se reconhece que a "realidade" se resume à manipulação dos bonecos e da luz, desmorona o efeito ilusório produzido pelas sombras. Vem isto a propósito do fim de semana passado, quando o país assistiu ao último episódio do prolongado wayang em que o CDS mergulhou.

No seu peculiar teatro de sombras, Francisco Rodrigues dos Santos afirmava pertencer à "direita social", como se o rótulo recentemente recuperado por Marcelo Rebelo de Sousa fosse suficiente para iluminar um rumo político consistente. Viu os conselheiros do partido negarem-lhe a vitória inequívoca que julgava ser suficiente para remeter os adversários ao silêncio. Agora, o jovem líder limita-se a sobreviver até ao inevitável congresso. Se as estrelas se alinharem e se o PSD lhe garantir o anunciado seguro de vida, sobreviverá às eleições autárquicas e ao congresso.

Num exercício de modéstia inédito na política nacional, Adolfo Mesquita Nunes, nas páginas de um jornal, apresentou-se como o messias da agremiação. Descrevendo a sua candidatura como a "última oportunidade para salvar o CDS" - momento esse que, presume-se, fica adiado até ao próximo congresso -, o challenger não atribuiu importância alguma à elaboração de um programa político que pudesse concretizar a sua "sociedade de crescimento sem deixar ninguém para trás". Uma ambição nobre partilhada por todos os partidos portugueses que no entanto insistem em apresentar propostas e políticas públicas. Muito naturalmente, um salvador dispensa tais minudências. Mesquita Nunes é, ele próprio, todo um programa político. Infelizmente, os conselheiros do CDS não partilharam desse entendimento.

Claro que os dois protagonistas representam sensibilidades internas diferentes. Porém, a clivagem no interior do CDS não é, como muitas vezes se afirma, um duelo ideológico entre conservadores e liberais. Melhor dizendo, não é - no essencial - isso. É em parte um conflito entre personalidades. É sobretudo uma disputa entre tribos irreconciliáveis: uma fação de elites e barões urbanos (os tais liberais de Lisboa e do Porto) contra uma fação de descamisados representativa do partido profundo, largamente excluído das benesses do poder. A investida de Mesquita Nunes evidenciou, com toda a transparência, a luta entre o portismo e o projeto pós-portista de Francisco Rodrigues dos Santos. Neste jogo de zero-soma em que o CDS se transformou, a vitória de uma fação passa pela aniquilação política da outra. Deixou, simplesmente, de haver espaço no mesmo partido para Abel e Caim. Tratando-se de uma luta fratricida, os apelos à unidade partidária são meros exercícios de cinismo porque os protagonistas deste drama sabem que o tempo da unidade há muito passou.

Paulo Portas esteve fisicamente ausente do Conselho Nacional. Mas o seu fantasma político esteva omnipresente durante o desenrolar do wayang de sábado. O dilema do CDS - um dilema de sobrevivência - tem origens na rutura realizada por Manuel Monteiro quando tentou resgatar um partido conduzido a um beco sem saída pelo centrismo de Freitas do Amaral. Eurocético e populista, o projeto de Manuel Monteiro seria por sua vez, interrompido quando Portas transformou o CDS numa federação de nichos e descontentamentos. Com Paulo Portas, a inconsistência programática e ideológica era notória e permanente porque o objetivo era simplesmente adquirir uma fatia do poder, o cimento que então garantia a unidade partidária. Talvez fosse a única estratégia possível. Acantonado à direita no espetro partidário, Portas sabia que era a partir do Estado que o CDS se poderia consolidar e expandir à conquista do eleitorado mais moderado do PSD. Nessa altura, tentou congregar liberais, conservadores e democratas-cristãos, promovendo a constituição de sensibilidades internas. Desconfortável com a moderação de Portas, a direita musculada, sem outras opções viáveis, manteve-se fiel ao CDS.

Nos momentos mais eufóricos, o CDS ambicionou substituir o PSD como o partido liderante da direita. Portas fez os possíveis mas, como sempre, a realidade impôs-se e o governo de coligação chefiado por Passos Coelho acabou por revelar as limitações do sonho portista. Até ao seu momento "irrevogável", o CDS acumulou poder através dos ministérios que ocupava e, não menos importante, escudou-se das medidas mais impopulares anunciadas e defendidas por Passos Coelho. Ao mesmo tempo, como no caso da privatização da RTP, esperando sair do governo sem assumir os custos políticos inerentes à execução do programa da troika, o CDS fazia de "polícia bom" da coligação. Tudo mudou com a demissão "irrevogável" de Portas, a tentativa de abandonar o governo e assim evitar maior desgaste político.
A manobra produziu o efeito inverso: debilitado, Portas entregou a liderança da direita a Passos e reduziu substancialmente a autonomia estratégica do portismo. Apesar de tudo, a coligação PàF ainda permitiu ao CDS preservar um número elevado de deputados e ocultar as contradições estratégicas.

Com o CDS num beco estratégico, Portas abandonou o partido e Assunção Cristas avançou com o intuito de dar seguimento à estratégia portista. Com Mesquita Nunes a seu lado, empenha-se na conquista de novos eleitores. Desorientado, o partido aspira a representar tudo e todos. Mas era tarde para federar a direita em torno do CDS. Desde logo, Cristas não entendeu que o resultado que obteve na corrida à Câmara de Lisboa devia-se mais a erros do PSD do que aos méritos da sua candidatura. Quando enfrenta as eleições legislativas com a mesma estratégia de "abertura e alargamento", reduz o CDS a 4,2% e a cinco deputados.

Cristas e Mesquita Nunes não perceberam que, desde o fim do governo PSD-CDS, as condições políticas e sociológicas do país tinham mudado porque o PSD, após a chamada "recentragem" ideológica promovida por Rui Rio, que efetivamente abdica de ver o PSD federar sensibilidades à direita do PS, abriu espaço político que o Chega e a Iniciativa Liberal vieram preencher. Essa nova realidade provocou - e provocará - estragos no PSD. Mas foi letal para o CDS. Com a emergência da direita musculada de Ventura e da direita liberal e "progressista" da IL, os eleitores do CDS desertaram de uma casa que lhes oferecera o abrigo possível quando as alternativas à direita se resumiam a PSD e CDS.

Com o aparecimento do Chega e da IL, o CDS deixou de fazer sentido como opção eleitoral. Paulo Portas antecipou o problema e por isso nunca permitiu o surgimento de partidos viáveis à direita do CDS. Agora, Mesquita Nunes ambiciona trazer alguns votos da IL para o CDS. Mas apenas provocará a deserção de muitos mais eleitores para o Chega. Se Rodrigues dos Santos tentar concorrer com o Chega, perderá o eleitorado urbano para a IL. Se insistir na "direita social", situar-se-á num deserto político e perderá para ambos. Mesquita Nunes poderá ainda destituir Rodrigues dos Santos, mas não conseguirá reavivar o portismo. Em breve, enquanto Portas sonha com o Palácio de Belém, estaremos a escrever o óbito do CDS.

Professor universitário

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