O vírus moralista
Coloca-se "covid" e "curfew" (recolher obrigatório) no Google e as entradas multiplicam-se. Turquia, França, Grécia, Itália, República Checa, Oman, Índia. Deve ser portanto uma medida evidente na sua eficácia - pelo menos de acordo com os inquiridos numa sondagem da Aximage desta semana: 81% querem (ou acham bem) ser obrigados a ficar fechados em casa à noite.
Fico sempre, confesso, muito confusa com este tipo de informação: se as pessoas querem que as obriguem a ficar fechadas em casa à noite, por que não ficam? É que se a sondagem for mesmo representativa e mais de 80% achar realmente que a forma de "achatar a curva" é ficarem em casa mal o sol se põe, porque é que não tomaram já a medida milagrosa? É preciso serem obrigadas? Que diabo. Ou será que estas estão em casa muito sossegadas e são as malandras dos restantes 19% que andam aí a fazer noitadas como se não houvesse amanhã e portanto determinadas a que não haja mesmo?
Ainda posso perceber que em março houvesse muita gente favorável ao confinamento obrigatório - estava tudo em pânico com as notícias de Espanha e Itália e sem noção dos efeitos económicos desastrosos que sobreviriam necessariamente, e havia implicações do ponto de vista das escolas, da prestação do trabalho, das compensações para as empresas. Era preciso haver uma ordem governamental, medidas específicas.
Porém não há necessidade de nada disso para o recolher noturno. É só mesmo agarrar na mantinha e ficar no sofá. Daí que tenha muita pena de que a sondagem não tivesse perguntado às mesmas pessoas que defendem a proibição o que têm feito à noite - à exceção das obrigadas a sair por motivos profissionais, ou outros igualmente prementes, suponho que não seriam tontas a ponto de dizer que acham que deve ficar tudo em casa mal cai o sol e fazerem o contrário.
Podemos pois descansar: mais de 80% dos portugueses já estará a acatar a medida. Sendo assim, importante perceber em que dados se baseiam os governos para interditar a noite. Se calhar é preciso aqui lembrar que houve países onde se permitiu a reabertura de pubs e bares e discotecas e outros (como a Suécia) onde estes nunca fecharam; não é, como se sabe, o caso de Portugal. Por cá os bares e discotecas encerraram em março e só puderam reabrir a partir de agosto com grandes restrições: bebidas a partir das oito da noite só acompanhadas de comida e fecha tudo à uma da manhã - tal qual os restaurantes. Nuns e noutros era possível até há pouco tempo juntarem-se 10 pessoas numa mesa; agora o máximo são cinco.
Posto isto, que exatamente se pretenderia, no país, com um recolher obrigatório noturno? A Direção Geral de Saúde tem dito que as reuniões familiares e de amigos têm sido um dos meios mais frequentes de contágio. OK. Mas tal significa reuniões noturnas? E como compaginam as autoridades essa informação com a permissão de "festas de casamento e batizado com até 50 pessoas"? Tenho muita dificuldade em perceber a lógica: há um tipo de festas abençoado e outros não? Se houver sacramentos o vírus não ataca, é?
A minha experiência vale o que vale (nada), mas das infeções de que tenho conhecimento no meu círculo de relacionamento, duas (de um casal pai de uma amiga) ocorreram num almoço com uma pessoa infetada; uma - da mãe de um amigo - provavelmente por contacto com uma vizinha idosa; duas outras (uma amiga e o filho) por contacto com uma empregada doméstica. Também sei de várias pessoas que estão em casa, em quarentena ou confinamento profilático, por contactos no contexto laboral e de miúdos na escola.
Se calhar é acaso mas não tive até agora conhecimento de nenhuma situação na qual alguém tivesse contraído a infeção por ir a um bar beber um copo e trincar um salgado enquanto, numa cadeira, abanava a cabeça ao ritmo da música (é proibido dançar). O mesmo se aplica a peças de teatro, dança, concertos ou filmes - ou qualquer espetáculo artístico noturno. Não conheço ninguém infetado ou em quarentena por ter ido jantar a casa de amigos - admito que haja, claro, mas qual a percentagem desses casos no cômputo geral? Justificam que se imponha um recolher obrigatório?
(Claro que ouvimos todos falar de infeções em acontecimentos noturnos, mas tratava-se de festas ilegais com centenas de pessoas. Ou seja, já se trata de situações interditas pelas regras em vigor.)
Se a ideia do desejado recolher obrigatório é impedir as pessoas de se encontrarem com outras, de refeiçoar com outras, de conviver com outras, nesse caso se calhar não chega impedi-las de sair de noite, não é? É que, posso garantir, tudo, mas absolutamente tudo, se pode fazer de dia, haja sol, chuva ou nevoeiro. Daí que seja necessário questionar o que leva governos e pelos vistos tanta gente a achar que a noite é um meio de propagação privilegiado do coronavírus.
E talvez tenhamos de concluir que é o óbvio: a ideia de que à noite, se calhar por causa do escuro, se fazem coisas que de dia não. E vice-versa - porque de dia a maioria trabalha. A noite é então o tempo do descanso mas também do lazer, da descontração, da descompressão. Associada desde sempre à boémia, ao divertimento, à dança, ao álcool e outras substâncias entorpecentes ou estimulantes, e portanto ao relaxamento das normas e dos corpos, a noite é vista ainda - temos de concluir - como o lugar dos excessos, do sexo, do deboche. Do errado, em suma.
Claro que, se formos minimamente racionais, saberemos que nenhum recolher obrigatório impede alguma dessas coisas ou acontecimentos, como interditar a venda de álcool em supermercados a partir das 20 também não impede ninguém de beber (aliás, claro, surgiram já negócios de entrega de bebidas depois dessa hora - temos gente muito empreendedora neste país). Mas o que interessa não é na verdade impedir, o que só seria possível num Estado policial (que espero que ninguém, a não ser os muito chanfrados, deseje).
O que interessa, o que move esta pulsão proibicionista é, como em todos os proibicionismos, o pensamento mágico do moralismo. O que permite empurrar para os outros - o outro, neste caso - a culpa e o odioso, riscar uma fronteira entre os bons e os maus cidadãos. Sendo os maus, claro, os que não se conformam com a ideia de que a vida se fez para trabalhar e estar em família (considerada como as pessoas com quem se partilha a habitação) e querem laurear a pevide, encontrar-se com gente - seja indo a um restaurante, a um bar beber um copo, ou à casa ou pátio de alguém. Quiçá queiram mesmo dar uns beijos, uns abraços - ter sexo até. E isso, que horror, é que não pode ser. Agora só casamentos e batizados - e tudo de dia, não vá o diabo tentar-nos.
Jornalista