O violador contumaz e o guarda-costas assassino

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Ambos os filmes apresentados ontem em competição - Der Freie Wille (O Livre-Arbítrio), de Matthias Glasner, e El Custodio (O Guarda-Costas), do argentino Rodrigo Moreno - têm como protagonistas homens sem saída, encurralados numa espécie de determinismo solipsista.

O filme alemão é de uma frieza quase clínica. Recorrendo a uma paleta de tons cinzentos, Glasner acompanha Theo (Jürgen Vogel), um homem que esteve internado nove anos, depois de violar três mulheres. A primeira cena, arrepiante de tão crua, mostra uma dessas violações em toda a sua brutalidade e afasta-se de imediato do tom púdico de As Partículas Elementares, a caricatura do romance de Houellebecq que Oskar Roehler trouxe à Berlinale.

Fugindo dos moralismos fáceis, Der Freie Wille é a história de um homem que luta sem sucesso contra uma libido compulsiva, violenta, malsã. Ao sair em liberdade e ao conseguir emprego numa gráfica, acende-se uma esperança. Theo envolve-se com a filha do patrão e parece descobrir na sexualidade "normal" o meio de fugir ao seu inferno interior. Puro engano. No momento exacto em que parece redimido, Theo volta atrás, reincide e Glasner acompanha-o, com uma lentidão por vezes exasperante (o filme dura perto de três horas), até ao fundo do abismo.

Igualmente exasperante é o ritmo de El Custodio, que segue a par e passo o quotidiano de Ruben, guarda-costas de um ministro em Buenos Aires. Ruben conduz o ministro de carro para os seus compromissos, tanto oficiais como particulares (fins-de-semana em família ou visitas à amante), ouve os segredos do ministro, está por dentro das mentiras do ministro e sobretudo deixa-se humilhar, sem queixumes, pelo ministro. Pelo meio, espera, espera, espera. Dentro do automóvel, nos corredores, à porta das salas de conferência.

Moreno faz-nos sentir essas esperas até ao limite, tornando-as quase dolorosas. Neste filme praticamente sem acção, o pouco que acontece sublinha a platitude da vida do protagonista. Ruben almoça com a irmã e restante família disfuncional num restaurante chinês; recorre a uma prostituta que recebe os clientes na casa da mãe; compra um colete à prova de bala; limpa com esmero a arma. E é tudo. Impassível, anula-se na função que lhe destinaram. Até ao dia em que o ressentimento, acumulado em doses microscópicas, transborda de uma vez só.

Ao assassinar o ministro que era suposto proteger, e que na prática ninguém ameaçava, Ruben aniquila-se. Porque ele só existe enquanto sombra do ministro. E nenhuma sombra resiste ao desaparecimento do seu objecto. É aqui que os dois filmes se voltam a tocar e a afastar, porque tanto Ruben como Theo se suicidam na praia. Mas, enquanto Glasner nos atira aos olhos a lâmina que corta as veias, Moreno opta por nos deixar mais uma vez à espera, enquanto o dilema do guarda-costas se resolve fora de campo e sem a detonação que tornaria tudo demasiado óbvio.

V de Vazio

Assinado por James McTeigue, V for Vendetta (fora de competição) é uma espécie de sucedâneo de Matrix, com uma Inglaterra futura - governada por um chanceler fascista - -substituindo a realidade virtual da trilogia e, no lugar do libertador Neo, um émulo de Guy Fawkes - interpretado (ironia das ironias) por Hugo Weaving, que nos filmes dos irmãos Wachovski desempenhava o papel do pérfido agente Smith.

Para quem não conhece História britânica, recorde-se que Fawkes, católico radical, foi o cérebro da Conspiração da Pólvora, que queria fazer explodir o Parlamento inglês a 5 de Novembro de 1605, com o rei Jaime I lá dentro, aproveitando o caos para criar um novo regime em que o catolicismo deixasse de ser perseguido. O golpe falhou e o terrorista avant la lettre foi enforcado e esquartejado, com os cúmplices.

Quase quatro séculos mais tarde, o projecto anarquista de Fawkes é o molde para a personagem V, herói da novela gráfica V for Vendetta, que Alan Moore e David Lloyd começaram a publicar no início dos anos 80 e que os Wachovski adaptaram ao cinema, deixando para McTeigue a realização. Mestre no manejo das facas e sempre com uma máscara sorridente a esconder o rosto desfigurado, V é metade Conde de Monte Cristo, metade Fantasma da Ópera generoso e implacável, delicado e vingativo, culto e brutal. Com a ajuda de Evey (Natalie Portman), não só elimina um a um os inimigos que o transformaram num monstro como consegue cumprir o sonho de Fawkes. O Parlamento vai mesmo pelos ares e com ele um regime ditatorial nascido da histeria securitária deste princípio de milénio.

Acontece que o eventual sub-texto político do filme é esmagado por uma cornucópia de volte-faces do argumento e por cenas de acção infindáveis e enfadonhas. Ao querer ser muitas coisas, V for Vendetta acaba por não ser nada. Além de que rebentar um edifício por ser um "símbolo", após o 11 de Setembro, só pode ser uma boutade de mau gosto.

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