O verão que mudou a história

Mortes, violência, guerra. Mas também esperança, libertação, reflexão. 1968 foi um raro combate político global, e explica muito dos dias de hoje
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1- O princípio do fim

Estamos a 3 de agosto e o tempo foge. Neste sábado, às nove horas da manhã, António de Oliveira Salazar está no terraço do Forte de Santo António da Barra, no Estoril. Franco Nogueira, que era então o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, conta o que se passou: "Já ali o espera Augusto Hilário, que há muito assiste o chefe do governo como pedicuro. Hilário traz consigo o Diário de Notícias; Salazar pede-lho emprestado. Entre as quatro ou cinco que estão dispostas na plataforma do Forte, Salazar escolhe uma cadeira de assento de lona; e segurando o jornal desdobrado, que percorre com os olhos, abandona-se desamparado e como que se deixa cair na cadeira."

No mesmo dia, à mesma hora, quase todos os líderes do Pacto de Varsóvia, a associação militar dos países de Leste associados à União Soviética, reuniam-se em Bratislava. O romeno Ceausescu, que já sabia o motivo da cimeira, faltou. Alexander Dubcek era um anfitrião preocupado. A sua Checoslováquia vivia dias de "primavera". Mas em Bratislava, o líder soviético, Leonid Brejnev anunciou como tudo iria terminar: "Cada partido comunista é livre de aplicar os princípios do marxismo-leninismo e do socialismo no seu próprio país, mas não é livre para desviar-se desses princípios se quiser continuar a ser um partido comunista."

De uma maneira ou de outra, o verão de 1968 é um momento de viragem, mundial. Martin Luther King acabou de ser assassinado (em Memphis, a 4 de abril), Robert Kennedy também (em Los Angeles, a 6 de junho). Na China está em curso, há dois anos, uma "revolução cultural". Desde o início do ano, os EUA sofriam, com as várias fases da "ofensiva do Tet", no Vietname, além de pesadas baixas, uma clara derrota política dentro das suas fronteiras e na opinião pública mundial, que ficaria a conhecer, mais tarde, o massacre de My Lai. Em todos os continentes, os estudantes revoltam-se. O clímax, pela repercussão mundial, pela rápida celebridade de ícones até então desconhecidos, pelas experiências inéditas e pelas análises e teorias que iriam proporcionar foi o Maio francês, um movimento que se transformou em marca até hoje reconhecida. Mas a revolta estudantil foi fagulha que fez do planeta a sua pradaria, de Portugal ao Japão, da África do Sul à Suécia, do Brasil à Polónia. Embora essa revolução mundial tivesse terminado sem um único governo derrubado, o que aconteceu foi mais profundo do que isso.

2 - O fim da ideologia

Por esses dias, Jean-Luc Godard filmava nos arredores de Paris um documentário cético, Um Filme Como os Outros. Cinco jovens, estudantes universitários e trabalhadores fabris, estão sentados num prado a poucos metros de um bloco de apartamentos de construção barata. Escondidos por arbustos, de costas para a câmara, agachados, as suas caras mal se veem. A única rapariga diz:

"A ideologia é a mentira da linguagem."

Chamar a isto uma guerra de gerações é uma forma demasiado simples de olhar para o que se passou. É verdade que, com muitos complexos de serem uma "classe privilegiada", os estudantes foram determinantes na luta política desse tempo. Mas houve uma mudança mais radical. Aquilo que o historiador Tony Judt identificou como momento inicial do afastamento definitivo da tradicional "política ideológica". As correntes que dominavam a política então - social-democracia, democracia cristã, comunismo - foram mais abaladas do que os governos que combatiam, na rua, estudantes e trabalhadores unidos num protesto violento.

No dia 5 de agosto, ainda Salazar não se tinha queixado das dores que sofria ao seu médico, já os EUA choravam outras mortes e mudavam um pouco mais.

Três militantes do partido Black Panthers foram mortos a tiro por dois policias, numa bomba de gasolina em Los Angeles no mesmo dia em que o candidato Richard Nixon bateu os seus adversários (entre os quais Ronald Reagan) na corrida do partido Republicano para a candidatura presidencial. O programa de Nixon era claro: "Os dogmas do passado calmo simplesmente não funcionam no presente agitado. O caso é novo. Precisamos de, urgentemente, pensar e agir de uma maneira nova. Esta é uma era de rápida, e sem dúvida violenta, mudança."

Em Nova Iorque, na casa da filósofa Ayn Rand, judia americana de origem russa, juntava-se um "Colectivo". O nome era sarcástico. No fundo, Rand queria sublinhar apenas a antítese daquilo em que acreditava, o individualismo radical ou o que chamou, com grande polémica, o egoísmo. Uma das suas frases mais conhecidas é "o dinheiro é o barómetro da virtude de uma sociedade".

Um dos mais empenhados membros do "Colectivo" era Allan Greenspan, o coordenador do programa económico de Nixon e que viria a ser, 40 anos depois, como presidente da Reserva Federal dos EUA, um dos responsáveis pela grande crise económica dos últimos anos.

Ao mesmo tempo que nascia, nos protestos, uma "Nova Esquerda", com uma agenda muito diferente da que marcara o século XX até então - com prioridades novas como a ecologia, o anti-racismo, o feminismo, a liberdade de escolha sexual, a legalização das drogas, o anti-consumismo- surgia, naqueles tempos, também a corrente mais influente, hoje, da direita. Os livros de Rand (que morreu em 1982) são os favoritos de pessoas tão diferentes como Donald Trump ou o CEO da Uber, Travis Kalanick. Vendem-se, em 2018, às centenas de milhar.

3- Os limites da violência

Os manifestantes não eram vistos da mesma forma por toda a esquerda. Em junho, logo após os meses de protesto dos estudantes (em Paris, Roma, Estocolmo e Madrid), o realizador italiano Pier Paolo Pasolini criticou: "Agora, os jornalistas do mundo inteiro andam a lamber-vos o rabo... mas eu não, meus queridos. Vocês têm caras de fedelhos mimados e eu detesto-vos tanto quanto detesto os vossos pais. Quando ontem bateram na polícia em Valle Giulia eu simpatizei com os polícias porque eram eles os filhos dos pobres."

Filmados por Godard, os jovens franceses falam do mesmo:

"É evidente que o terrorismo citadino não pode ter nenhum papel decisivo..."

"Não é atirando cocktails molotov para qualquer lado que vamos conseguir alguma coisa"

As vozes sobrepõem-se no filme, como uma polifonia brechtiana.

É verdade que, em França, a tese anti-terrorista, foi a seguida. Mas não aconteceu o mesmo na Alemanha e Itália, onde franjas de estudantes enveredaram pela violência radical (grupo Baader-Meinhof, Brigadas Vermelhas...)

No documentário, as imagens do grupo que debate são a cores, em contraste com as do protesto do "Maio" parisiense, que as intercalam, que o realizador usa a preto e branco.

Godard queria incluir no filme uma forma de falar significativa. E essa é a diferença que, 50 anos depois, parece mais relevante entre aquele e o nosso tempo: o tempo que demora uma conversa, o poder das palavras ("debaixo da calçada, a praia"), a argumentação. Não era, por muito que possa parecer, a tecnologia a limitar o fluxo das ideias. A televisão a cores, os jornais e os telefones fixos (todos hoje ameaçados pela dominante internet) chegavam para criar uma história mundial.

"O Mundo inteiro está a ver", gritavam os manifestantes que foram a Chicago protestar contra a guerra do Vietname nos dias da convenção do Partido Democrático.

4- O fim da "grande sociedade"

Lyndon B. Johnson confidenciou, na sala oval da Casa Branca, que a oposição do jornalista Walter Cronkite (da CBS) à guerra no Vietname tinha como consequência perder "a América do centro". Tinha razão. Cronkite era o cidadão mais confiável do país, segundo as sondagens.

Johnson pôde ainda ouvi-lo dizer que o Partido Democrático fazia a sua convenção num "estado policial", no final de agosto de 1968, em Chicago, durante a escolha do candidato que se iria bater com Nixon nas próximas eleições.

As imagens permaneceram por muito tempo na memória dos americanos. Dezenas de milhar de polícias, militares, tropas federais, a espancar, prender, empurrar jovens manifestantes. Numa das cenas, uma fila de polícias (enviados por um mayor democrata...) encaminha os detidos até à carrinha que os levará à prisão. O último dos polícias está junto à porta e bate com o seu cassetete nas costas de um jovem que entra. Desde 1968, os Republicanos ganharam oito eleições, os Democratas apenas cinco.

Johnson saiu da política, envelhecido, com apenas 59 anos. A sua "grande sociedade" foi o último projeto político social-democrata nos EUA e quase nada restou dele quando o Vietname se sobrepôs a tudo o resto.

Enquanto os democratas elegiam Hubert Humphrey, Praga estava ocupada, desde 21 de agosto, pelas forças do Pacto de Varsóvia. A resistência civil foi grande. Os sinais de trânsito foram pintados para iludir os tanques. Mas, no final, Dubcek renunciou. De facto, de todos os grandes movimentos políticos e sociais de 1968, a Primavera de Praga foi a única que derrubou um governo... mas no sentido contrário do seu desejo.

5- E depois do adeus

Vários comunistas portugueses não perdoaram ao seu partido. O PCP justificou a invasão da Checoslováquia pelos tanques russos com a importância do momento internacional, mais por querer preservar a sua aliança com Moscovo do que por discordar da "primavera de Praga" - embora tivesse acusado o partido checo de promover um "regresso à democracia burguesa".

Muitos comunistas portugueses romperam, então. Manuel Alegre, em Argel, Eurico de Figueiredo, na Suíça, Flausino Torres, em Praga.

É também no verão de 1968, em Lisboa, que um grupo de universitários - na ressaca de uma carga policial sobe uma manifestação contra a guerra do Vietname - decide criar a Esquerda Democrática Estudantil que, mais tarde, daria origem ao principal grupo maoísta português, o MRPP.

As escassas notícias sobre a operação de Salazar, seguida de uma hemorragia cerebral, em Setembro, chegaram a um dos mais remotos pontos do que era Portugal: uma barbearia em São Tomé, onde Mário Soares - deportado para a ilha em março - cortava o cabelo.

Estava a começar a "primavera Marcelista" em Lisboa, ao mesmo tempo que terminava a de Praga. Todas fora de época, no fim do verão. Tinham perdido a vida, entre julho e este final de setembro, 196 militares portugueses nas guerras em África. Como o de Johnson, o projeto político de Marcello Caetano cedeu à força da guerra.

Portugal, Angola, Moçambique, São Tomé, Guiné - e, de outra forma, também a Espanha - viriam a ser dos poucos países onde o verão quente de 1968 teria, poucos anos depois, um efeito concreto. O epílogo no mundo foi mais lento, e duradouro. Mesmo que o tempo tenha substituído hippies por yuppies, para alguns a pergunta continua a não ter resposta: "O que teria acontecido se...?"

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