O velho general cristão eleito presidente com o apoio xiita
"Onde está a Constituição?" - perguntou Michel Aoun, o novo presidente do Líbano, quando chegou o momento de prestar juramento perante a Assembleia Nacional em Beirute, que acabara de o eleger no passado 31 de outubro. A resposta veio célere do presidente do Parlamento, Nabih Berri: "Não se preocupe. Está tudo tratado."
O diálogo entre o cristão Aoun, de 81 anos, e o xiita Berri, de 78 anos, foi um pequeno detalhe na longa crise política libanesa, de que a eleição de Aoun se constitui como o acontecimento mais relevante após dois anos de negociações. Isto porque o pacto nacional de 1943 estabelece a presidência do país para a comunidade cristã maronita, a direção do governo para os muçulmanos sunitas e a chefia do Parlamento para a comunidade xiita. Só que o peso demográfico - e político - de cada comunidade é hoje distinto do existente há mais de 70 anos, diferença que motivou uma intermitente guerra civil entre 1975 e 1990. Conflito em que o então general Aoun e também primeiro-ministro foi um dos atores principais. E em que enfrentou as milícias xiitas, drusas e os grupos palestinianos.
O tom da troca de palavras entre Aoun e Berri, vista na televisão nacional, que transmitia a cerimónia em direto, além da tensão evidenciada na linguagem corporal dos dois, veio recordar os tempos de conflito armado em que o movimento Amal, dirigido por Berri, combatia as forças do exército libanês fiéis ao general. Hoje, são aliados políticos e a eleição de Aoun ficou a dever-se bastante ao outro importante grupo xiita no país, o Hezbollah. Não é certamente de menor alcance a eleição de Aoun ter sido saudada por Teerão. Mas o gesto de Berri, ao ordenar que não estivesse presente um exemplar da Constituição e o teor do discurso que proferiu, uma intervenção de política geral (o que deveria estar reservado para o novo presidente) mostra até que ponto as tensões do passado não desapareceram. Nota positiva: foi esta a primeira vez, desde 1990, que um presidente foi eleito com os votos de todos os principais partidos no Parlamento.
Há contudo um elemento de ironia histórica no facto de Aoun aceitar uma função com menos poderes do que no passado, em resultado do Acordo de Ta"if, assinado em 1989 na Arábia Saudita, a que o general se opôs. Procurando refletir a realidade política, demográfica e religiosa do Líbano na época, o acordo circunscreveu a influência dos maronitas, ainda que atribuindo-lhes mais deputados, e reforçou os poderes do governo, a ser chefiado por um muçulmano sunita.
A eleição de Aoun sucedeu após uma crise de dois anos e cinco meses em que o Líbano esteve sem presidente, com os diferentes dirigentes políticos a afirmarem que bloqueariam o processo até haver um acordo sobre o nuclear iraniano ou entre este país e a Arábia Saudita, ou ainda uma solução para a guerra civil na Síria - exemplos eloquentes de como a conjuntura regional pesa ainda e sempre sobre o Líbano.
Aos 81 anos, Aoun regressa 26 anos depois ao palácio presidencial onde se entrincheirara ao declarar a "guerra de libertação" contra o ocupante sírio. Em 1988, o presidente cessante Amine Gemayel, perante a impossibilidade da eleição de um sucessor, nomeia o general Aoun, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas libanês e que fora comandante de uma unidade de elite multiconfessional, para dirigir um governo militar de transição. Aoun não se restringe a esse papel: tenta expulsar os sírios e desarmar as milícias no país, em particular as cristãs, dirigidas por Samir Geagea. Falha em ambas as frentes, e as tropas sírias expulsam-no do palácio presidencial a 13 de outubro de 1990. O general refugia-se na embaixada de França em Beirute e depois neste país, onde permanece até maio de 2005, quando as tropas deixam finalmente o Líbano. Tendo permanecido crítico da situação no país, no regresso Aoun transforma o movimento que fundara em Paris, a Corrente Patriótica Livre (CPL), em partido político. Em 2006 assina um acordo com o Hezbollah e concorre às presidenciais de 2007, onde é derrotado por outro general cristão, Michel Sleiman. É uma das principais figuras da oposição até às legislativas de 2009, quando a CPL é o segundo partido mais votado, atrás da Corrente do Futuro, do sunita Saad Hariri, que vai ser agora seu primeiro-ministro. O CPL passa para o governo em aliança com os xiitas, dois pequenos partidos cristãos e um pró-sírio.
De origem cristã maronita, Aoun nasceu a 30 de setembro de 1933 em Haret Hreik, subúrbio cristão-xiita de Beirute. É casado e tem três filhas.
Perguntas e Respostas
Quais as raízes da crise política no Líbano?
Resultam da natureza do regime e da partilha do poder inscrito na Constituição de 1926, reforçada pelo pacto de 1943, e que não foi alterado na revisão de 2004, possível na sequência do acordo de Ta"if, em 1989. Este acordo apenas retificou a proporção da representação das diferentes comunidades, tornando paritário o número de deputados cristãos e muçulmanos.
Que consequências do sistema para o país?
O Líbano permanece dividido em bases confessionais, o que favorece o clientelismo em termos de regiões e grupos político-religiosos. O que impede a consolidação de um Estado nacional e de uma identidade única no país. Os interesses das diferentes comunidades permanecem superiores ao nacional.
Os conflitos regionais refletem-se no país?
Sim. A Síria teve tropas no país até 2005, quando foi forçada a retirar após protestos gigantescos na sequência do assassínio do ex-primeiro-ministro Rafic Hariri num atentado à bomba. O Irão e a Arábia Saudita são também protagonistas de relevo, apoiando, respetivamente, xiitas e sunitas.
Como foi possível a eleição de Michel Aoun?
O presidente é eleito pelo Parlamento, onde Aoun conseguiu atrair o voto dos grupos xiitas e pró-sírios, que integram o governo em funções com o partido do presidente. O antigo general conseguiu igualmente o apoio do principal movimento da comunidade cristã, as Forças Libanesas de Samir Geagea, e também do principal partido sunita.
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